Primeiro time de futsal trans do interior de SP dribla preconceitos e quer ser inspiração: ‘a referência somos nós’


De Campinas, o Pogonas foi criado para oferecer aos jogadores trans um espaço seguro e acolhedor para praticar esportes. Dia da Visibilidade Transexual é nesta segunda (29). Time de futsal Pogonas é o primeiro do interior de São Paulo formado exclusivamente por pessoas transexuais
@Lorencu/Divulgação
Era final de 2019 quando Tiago Miguel Pires de Abreu, de 27 anos, e alguns amigos decidiram se organizar em um grupo do WhatsApp para jogar bola no final de semana. Não era nada muito formal, coisa corriqueira de quem quer reunir a galera para se divertir e botar o papo em dia. ⚽
O que eles não imaginavam é que daquela brincadeira surgiria um projeto acolhedor e revolucionário. Os amigos em questão são pessoas transexuais, homens, mulheres e não-binários, que queriam se encontrar em um esporte livre de julgamentos.
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Morando em Campinas, no interior de São Paulo, fundaram uma equipe que mais tarde se tornaria a Associação Trans Atlética e Cultural Pogonas, com direito a uniforme, treinadora e o mais importante: espaço para quem dificilmente se veria em qualquer outro time.
“A gente não tem referências, nem no alto rendimento, nem no amador. A referência somos nós mesmo e os outros times trans. Algo que a gente tá levando meio pioneiro. Lógico que tem times que estão aí a mais tempo, mas o mais velho tem sete anos. É tudo muito recente”.
👉 No Dia da Visibilidade Transexual, celebrado nesta segunda-feira (29), o g1 conta a história do time e mostra como o esporte pode ser ferramenta para inclusão e representatividade.
Acolhimento em quadra
Times de futsal formados por pessoas transexuais se reúnem após campeonato em Campinas
@Jumoretzfoto/Divulgação
Daquela conversa no WhatsApp, o grupo de amigos se reuniu algumas vezes para colocar o esporte em prática. Em um primeiro momento, a ideia durou pouco por causa da pandemia de Covid-19, que obrigou o distanciamento social. No entanto, assim que puderam, voltaram com tudo. Quando se deram conta, o grupo havia crescido.
Não poderia ser diferente. É que, segundo Tiago, o apelo era grande entre jogadores que um dia tiveram que deixar o esporte por causa da identidade de gênero. “Muita gente jogava antes da transição e parou quando transacionou, não se sentia confortável em jogar em time cis – formado por pessoas que não são transexuais”.
“Também tinha gente que queria começar a jogar e queria estar em um ambiente acolhedor para praticar esporte. Foi com base nisso que a gente criou”.
“A gente sentou pra conversar, viu que queria ser um time, treinar regularmente, ter um técnico e tudo mais. A gente escolheu a data de um amistoso para ser nossa data oficial, data de fundação, que foi 10 de outubro de 2021. A gente ainda não tinha nome, a gente usava o do grupo, que era ‘Fut Trans”, relembra o fundador do time.
Aquele jogo, aliás, foi um exemplo de representatividade. O time de Campinas, pioneiro no interior, jogou contra o Meninos Bons de Bola, o primeiro da capital a reunir pessoas transmasculinas. “A gente criou o time com essa motivação de jogar com outros times trans, até com times cis, mas ter um espaço seguro pra jogar bola”.
Querem representar
Fernanda, patrocinadora oficial do Pogonas, ao lado de Tiago
Arquivo Pessoal
Além de reunir a galera a sua volta, o Pogonas quer ser parte do exemplo que falta. “A gente não tem muita representatividade de pessoas trans nos esportes. A gente tem alguns nomes, mas futebol, futsal, ainda é bem complicado. [Hoje] a gente tem alguns times trans, é algo que aumentou nos últimos tempos”, comenta Tiago.
Outro diferencial é que a associação campineira decidiu não se limitar a jogadores transmasculinos. O espaço é aberto para todos da comunidade, homens e mulheres transexuais e pessoas não-binárias – que não se definem em apenas um dos gêneros. “Somos um time misto trans. Tem sempre que bater nessa tecla, até em campeonatos”.
🤔 Mas, afinal, por que um time apenas para trans? Pessoas cis estão sendo excluídas? Para essas perguntas, o fundador tem respostas na ponta da língua. “É um erro que as pessoas cometem de dizer: ‘por que segregar, por que não fazer um time com pessoas cis e trans?’ Não é isso. A ideia é criar um espaço seguro, que é um incentivo para pessoas trans jogarem”.
“É um jeito de se juntar, ganhar essa visibilidade maior. É muito necessário ter times trans e que bom que isso vem crescendo. O que a gente tinha até algum tempo atrás eram pessoas trans deixando de jogar, deixando de praticar esportes por conta da transição”.
Os desafios são muitos
Pogonas enfrenta T Mosqueteiros no 1º Campeonato Paulista de Futsal Trans
@Jumoretzfoto/Divulgação
Para que outros times possam correr, o Pogonas – cujo nome vem de um lagarto que não se limita ao sexo feminino ou masculino – ainda precisa abrir os próprios caminhos. O fundador relata que os desafios são diários e vão da falta de apoio até o preconceito. Logo de cara, lidaram com grandes dificuldades para encontrar um lugar para treinar.
Descobriram quadras desestruturadas e o treino, que começou na Lagoa do Taquaral, ganhou um endereço novo. Hoje estão na Escola Estadual Benedito Sampaio, por meio de uma parceria com a unidade de ensino. O time também tem o apoio de uma pequena empresa, a Trava Truck, que ajuda a pagar o salário da técnica. Não há outros patrocínios até então.
Além disso, como é de se esperar, carregam na mala episódios de preconceito. Olhares desconfortáveis, falas atravessadas e até discussões. “Houve situações de tirarem foto da gente sem camisa, pessoal fazendo comentário, rindo. Teve discussão com gente que passava lá, nossos corpos são diferentes e isso gerava um choque”, relembra.
“Ali a gente estava todo mundo junto, mas depois cada um ia para casa, ia pegar ônibus. A gente não conseguia garantir a segurança do time. A gente acabou se afastando daquele espaço”.
Pogonas enfrenta T Mosqueteiros no 1º Campeonato Paulista de Futsal Trans
@Jumoretzfoto/Divulgação
No meio de tudo isso, felizmente, também há conquistas. Pogonas organizou o primeiro Campeonato Paulista de Futsal Trans, em janeiro de 2023, e agora se prepara para uma segunda edição. Para esse ano, também buscam apoiadores para ampliar o leque esportivo. Estão preparando uma equipe de vôlei e contam com um núcleo de ciclistas.
O primeiro time de futsal transexual do interior de São Paulo quer crescer, alcançar novos públicos e chegar mais longe. “Ocupar esses espaços ainda é um ato muito revolucionário, é algo que contesta bastante a cisnormatividade”, afirma. “A gente quer expandir, ser um coletivo esportivo de várias modalidades”.
🦎 Atualmente, o Pogonas é formado por 17 pessoas que atuam de alguma forma no coletivo, além de outras 30 que frequentam os treinos de futsal e vôlei. Os interessados em participar devem entrar em contato por meio das redes sociais.
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