Casal trans viraliza nas redes sociais mostrando gravidez e rotina em Fortaleza


Lara Nicole e Gabriel Lima estão esperando a primeira filha, Flora. Os vídeos deles ultrapassam milhões de visualizações. Nicole comenta sobre a possibilidade de filho biológico em um relacionamento transcentrado
As definições de família são simples: é o conjunto de parentes de uma pessoa e/ou o grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto. É assim a família de Lara Nicole Medeiros Mota e Gabriel Lima de Sousa, um casal transcentrado de Fortaleza. Eles aguardam a chegada de Flora, primeira filha biológica deles, com a gestação de Gabriel. Neste dia 29 de janeiro é comemorado o Dia Nacional da Visibilidade Trans.
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O conceito da palavra “transcentrado” significa que a relação é constituída por pessoas trans. Com Nicole e Gabriel, o novo modelo familiar, no entanto, seguiu etapas bem tradicionais: namoro, noivado e casamento.
Gabriel está grávido há cerca de sete meses. O casal decidiu, então, publicar vídeos nas redes sociais mostrando a rotina, de ser um casal transcentrado, a gestação de um homem trans, e outras facetas do dia a dia. Os vídeos já foram vistos milhões de vezes, e renderam milhares de seguidores.
“Foi uma coisa de rotina, não foi pensado para viralizar. A gente começou a postar nossa rotina e tudo foi acontecendo. A galera gostou”, disse Nicole. Ela é artista, cantora de funk conhecida como “Nik Hot”.
“Tem as transfobias, mas enquanto eles estão comentando, eu estou ganhando dinheiro nas duas plataformas. Não estou preocupada”, declarou Nicole sobre os comentários negativos e preconceituoso.
Gabriel Sousa e Lara Nicole, casal transcentrado de Fortaleza.
Ismael Soares/SVM
Além do funk, ela também já trabalhava produzindo vídeos para as redes sociais. Ela é também a fundadora da Casa Transformar, uma casa de acolhimento para pessoas trans, onde ela conheceu Gabriel.
“Quando você vai trabalhar com a internet, a primeira coisa é: não leia os comentários. Continue apenas fazendo, porque os comentários negativos podem desestruturar muito”, destacou.
“Eu coloquei uma coisa na minha cabeça. Sendo criticada ou não, não vai mudar nada na minha vida. Não vou deixar de ser travesti, não vou cortar meu cabelo, não vou deixar de usar roupa feminina porque simplesmente alguém acha que não é legal”, complementou a artista.
Nova família
Gabriel Sousa e Lara Nicole, casal transcentrado, fala sobre gravidez e rotina em Fortaleza.
Ismael Soares/SVM
Casar e engravidar, para Gabriel, foi um caminho para ressignificar o que ele entendia como família. A relação com os parentes biológicos é problemática, o que o motivou a sair de casa e buscar a Casa Transformar — instituição em Fortaleza, criada por Nicole, dedicada a abrigar pessoas trans.
“Quando eu me assumi, minha mãe me renegou. Daí, eu decidi sair de casa, e comecei a trabalhar como auxiliar de costura”, lembrou Gabriel. “Hoje em dia, ainda tento contato, mas eu nem deveria porque eles são muito transfóbicos”, lamentou.
Ele disse que sempre teve o desejo de ser pai, mas não via os meios possíveis, uma vez que apenas se relacionava com pessoas cisgênero — aquelas que se identificam com o gênero associado à elas desde o nascimento. Gabriel disse que o relacionamento dele com Nik foi o primeiro transcentrado.
Assim, a vontade de engravidar sempre esteve no horizonte do casal. “Foi uma explosão de sentimento. Eu estou muito feliz, muito grato. Não consigo nem achar uma palavra específica, só tenho a agradecer pela vida da minha filha, pela minha esposa, pelo meu casamento”, disse Gabriel.
Gabriel Sousa, costureiro, revelou que sempre teve desejo de ser pai.
Ismael Soares/SVM
O relacionamento e a convivência com Nicole, inclusive, iniciaram para Gabriel um ambiente familiar mais inclusivo. “Minha família é incrível; respeita meus pronomes, respeita o Gabriel. É um privilégio que, infelizmente, grande parte das pessoas trans não têm”, disse a artista.
“Minha família está mais ansiosa do que a gente para a chegada dessa menina. Eles estão sendo um pilar para a gente. Minha família ‘adotou’ o Gabriel, porque eles suprem o que a família dele não faz”, agradeceu.
Ela disse que a mãe mora no interior do estado, e o pai em Brasília. Ambos estão programando viagem à Fortaleza para estarem presentes no nascimento da neta — previsto para abril.
“Está sendo muito importante para mim ser mãe, uma mãe travesti, preciso reforçar isso porque a minha maternidade sempre é questionada, pelo fato que a gente vive em uma sociedade onde consideram que mãe é só quem gera, quem carrega na barriga”, complementou.
Lara Nicole comentou sobre a receptividade dos pais com a primeira neta.
Ismael Soares/SVM
Preconceito institucionalizado
Todos os documentos retificados e o apoio da nova família não livraram Gabriel de situações envolvendo preconceitos. Ele iniciou o acompanhamento gestacional no posto de saúde Regina Maria da Silva Severino, no Bairro Canindezinho, em Fortaleza, mas percebeu que colocaram “feminino” no cadastro dele.
“Eu fiquei muito indignado porque fui começar o pré-natal pelo posto — já sou retificado, tenho todos meus documentos — e a moça colocou lá ‘Gabriel Lima de Sousa; sexo feminino’. Ela disse que se colocasse masculino, o sistema não ia entender”, lamentou o costureiro.
Casal trans fala sobre experiência como pais biológicos.
Ismael Soares/SVM
Sobre o caso, a Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza disse que, atualmente, o prontuário municipal está ligado ao nacional, de responsabilidade do Ministério da Saúde; e que esse protocolo determina que o usuário só tenha acesso a alguns serviços e procedimentos a partir da informação do sexo biológico.
“Encaminhamentos para exames citopatológicos e relacionados a pessoas gestantes, por exemplo, exigem a informação de que o paciente é do sexo biológico feminino. A SMS lamenta o ocorrido e que o modelo do prontuário nacional esteja defasado para esta necessidade”, disse a nota do órgão municipal.
“Outra adequação já feita foi a inclusão da identidade de gênero do paciente entre as principais informações do prontuário, ficando visível para o profissional que realiza o atendimento”, complementou.
Já o Ministério da Saúde argumentou que foi identificado que a UBS Regina Maria da Silva Severino utiliza um sistema próprio para registro de dados, e não o sistema da rede nacional e-SUS APS, que é disponibilizado de forma gratuita pelo Ministério da Saúde aos municípios como opção para cadastro das pessoas e prontuário eletrônico para registro clínico dos atendimentos realizados nos serviços da atenção primária, onde é realizado o pré-natal.
“No caso do e-SUS APS, na ficha de cadastro individual, há o campo ‘sexo’, de preenchimento obrigatório pelo profissional de saúde, com as opções masculino e feminino – em referência exclusivamente ao aspecto biológico da pessoa. Na ficha, também existem os campos referentes ao nome social, orientação sexual e identidade de gênero”, disse o Ministério.
“Ainda assim, o sistema está em constante aperfeiçoamento para induzir processos cada vez mais qualificados, como a adequação de campos para registro das informações, conforme as necessidades de saúde e cuidado das pessoas na Atenção Primária”, destacou o órgão ministerial.
Secretaria de Saúde de Fortaleza mostra alterações em prontuário para inclusão de pessoas trans em prontuários.
SMS/Reprodução
Apesar do episódio com cadastro no sistema, Gabriel disse que nunca passou por outros episódios de transfobia durante o acompanhamento gestacional na unidade de saúde; diz que é respeitado, e tem o gênero respeitado, pelos profissionais por quem já foi atendido.
“Outra indignação é que não posso ter acesso a um benefício do Bolsa Família porque sou um homem trans. Então, outro problema”, lamentou. O benefício citado por Gabriel se refere a um acréscimo de R$ 50 no Bolsa Família às famílias que possuem gestantes. No entanto, o programa considera a gravidez apenas de mulheres cis.
O g1 entrou em contato com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, responsável pelo programa, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
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