
Em um cenário de déficits explosivos, desconfiança nas instituições multilaterais e transformações tecnológicas profundas, uma nova engrenagem passou a sustentar silenciosamente o poder do dólar no mundo: os stablecoins.
Nos Estados Unidos de Trump 2.0, essas moedas digitais ganharam novo status. De ferramenta útil no mundo das criptos, passaram a ser uma peça estratégica para financiar o Estado americano, garantir liquidez ao Tesouro e reforçar a dominação monetária global dos EUA.
Stablecoins (do inglês, moedas estáveis) são um tipo de criptomoeda projetada para manter seu valor fixo em relação a uma moeda fiduciária, normalmente o dólar americano. Ou seja, 1 unidade de um stablecoin como o Tether (USDT) ou o USDC sempre valerá 1 dólar, mesmo com as oscilações do mercado.
Para manter essa paridade estável, os emissores de stablecoins operam com uma reserva lastreada. Isso significa que, para cada stablecoin emitido, existe um dólar real correspondente guardado, geralmente investido em ativos altamente líquidos e seguros, como títulos do Tesouro dos EUA.
Como funciona o mecanismo? Vamos a um exemplo prático: um usuário deseja adquirir US$ 1.000 em stablecoins, ele envia esse valor em moeda real (dólar, euro, real) para a empresa emissora, como a Tether, a empresa emite 1.000 stablecoins e entrega ao usuário. Com os US$ 1.000 recebidos, a empresa compra títulos públicos dos EUA (como treasury bills), que rendem juros. Enquanto o usuário pode usar suas moedas digitais para pagar, investir ou enviar a terceiros, a empresa emissora lucra com os juros desses papéis, e ainda garante que poderá, a qualquer momento, reembolsar os stablecoins por dólares reais. Isso transforma os stablecoins em algo híbrido: meio de pagamento digital, reserva de valor e ferramenta de financiamento público indireto.
Por que isso interessa ao governo dos EUA?
A resposta está no déficit fiscal. Com gastos elevados e uma resistência política histórica a aumentar impostos, os EUA precisam emitir dívida constantemente para pagar contas. Isso acontece com a venda de títulos do Tesouro — e quanto mais compradores houver, melhor.
É aí que os stablecoins entram como aliados inesperados do Tesouro: as empresas emissoras, para manter o lastro das moedas digitais, são obrigadas a comprar títulos americanos. Cada dólar captado vira, em essência, um empréstimo ao governo americano.
Sob o segundo mandato de Donald Trump, esse modelo ganhou ainda mais força. Em 2025, o déficit federal cresceu US$ 243 bilhões nos primeiros 70 dias, apesar de cortes profundos em cargos públicos e programas sociais. A projeção é de que o déficit chegue a 7% do PIB até o fim do ano.
Diante disso, Trump impulsionou uma proposta legislativa chamada Genius Act, que exige que empresas emissoras de stablecoins invistam exclusivamente em títulos do Tesouro americano de curto prazo — exatamente os papéis que o Tesouro mais precisa vender com rapidez.
Tether: o banco paralelo do Tesouro?
O maior stablecoin do mundo, o Tether (USDT), já superou os US$ 149 bilhões em circulação. Seus emissores, para manter o lastro, aplicam a maior parte dos recursos em títulos da dívida americana.
Em 2024, a Tether tornou-se um dos maiores compradores individuais de dívida pública dos EUA, superando países como Noruega e Taiwan.
Mais curioso: o custodiante dessas reservas é a Cantor Fitzgerald, tradicional empresa de Wall Street comandada até recentemente por Howard Lutnick, hoje secretário de Comércio de Trump. A empresa agora é gerida por seus filhos e continua a operar investimentos cripto com o aval do governo.
Ou seja, enquanto a Casa Branca corta programas sociais, amplia silenciosamente o financiamento estatal por meio de emissores de criptomoedas, muitos deles com laços familiares com a própria administração.
O stablecoin como dólar informal global
Nos países do Sul Global, o stablecoin já é moeda corrente informal. Pequenos comerciantes na Nigéria, freelancers na Argentina, famílias na Venezuela ou no Líbano usam stablecoins como moeda confiável para escapar da inflação e da instabilidade cambial.
Além disso, as remessas de trabalhadores migrantes são feitas com mais rapidez e menos taxas, um sistema mais barato e eficiente que bancos e Western Union. Na prática, o dólar está se digitalizando e se espalhando sem precisar de base militar, embaixadas ou tratados. O poder da moeda americana agora circula por aplicativos e redes blockchain.
Europa parada, China observando! E o Brasil com isso?
Enquanto os EUA reinventam sua moeda como uma plataforma digital global, a Europa permanece estagnada. Não há um stablecoin sólido lastreado em euro. Os bancos centrais europeus ainda não lançaram uma moeda digital forte e os bancos tradicionais barram inovações por medo de perder sua posição dominante.
A China observa com atenção, mas regula pesadamente seu mercado de criptoativos. Os EUA, ao contrário, privatizam sua moeda, terceirizam sua política monetária e continuam se financiando via blockchain.
O Brasil está diante de um novo mapa monetário global e não pode ficar neutro. Existem três dimensões centrais para o país:
1. Adoção espontânea e desregulada no varejo: brasileiros já usam USDT para remessas, poupança informal e comércio eletrônico. Isso reduz o uso do real, enfraquece a política monetária do Banco Central e pode comprometer a arrecadação e o controle cambial.
2. Estímulo à digitalização do real: o Drex, real digital do Banco Central do Brasil, precisa avançar como alternativa segura e funcional aos stablecoins. Caso contrário, o Brasil assistirá passivamente à substituição silenciosa de sua moeda — primeiro em aplicativos, depois na prática cotidiana.
3. Integração com stablecoins de forma estratégica: em vez de apenas reprimir, o Brasil pode explorar stablecoins lastreados em reais para facilitar o comércio regional, investimentos e remessas. Também pode exigir paridade regulatória e rastreabilidade dos grandes emissores globais que atuam no país.
Hegemonia via inovação — e soberania via inteligência
Com os stablecoins, os Estados Unidos criaram uma nova forma de projetar poder financeiro: silenciosa, global, baseada em tecnologia e movida por interesses privados alinhados ao Tesouro.
O Brasil, por sua vez, precisa responder com visão estratégica. Não se trata de hostilidade ao dólar digital, mas de defesa do real, da soberania monetária e da capacidade regulatória nacional.
O futuro das moedas já começou, e passa pelo blockchain. Ignorar isso seria um erro histórico. Participar ativamente, com inteligência, regulação e inovação, é o único caminho para não ser apenas espectador de mais uma hegemonia que se impõe, agora, em versão digital.
*Coluna escrita por Fabio Ongaro, economista e empresário no Brasil, CEO da Energy Group e vice-presidente de finanças da Camara Italiana do Comércio de São Paulo – Italcam
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