Desafios para prevenção dos 4 abusos sexuais de crianças e adolescentes registrados por dia no ES

RESUMO DA REPORTAGEM

O Espírito Santo registrou mais de 1.400 casos de abuso sexual infantil em 2024, uma média de 4 por dia. A maioria dos crimes, segundo a polícia, acontece dentro de casa e é cometida por pessoas próximas. A omissão familiar, o medo e a dependência financeira muitas vezes podem dificultar as denúncias. A reportagem especial a seguir marca o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Infantil, lembrado na data de morte da capixaba Araceli Crespo, vítima de abuso aos 8 anos, e apresenta os sinais de alerta e debate os desafios para a prevenção de novos casos e proteção de vítimas no Espírito Santo. Acesse os capítulos:

  • Onde os abusadores podem estar?
  • Omissão de casos e medo da denúncia preocupam
  • Como identificar casos de abuso sexual infantojuvenil?
  • Veja os números da violência contra crianças no ES
  • Como prevenir e proteger vítimas?

“É preciso uma comunidade inteira para criar uma criança”. O provérbio africano, muito conhecido entre educadores, expressa a proposta de especialistas para prevenir os mais de quatro abusos sexuais infantojuvenis registrados, em média, por dia no Espírito Santo.

Em 2024, foram 1.479 meninos e meninas de até 17 anos feridos física e psicologicamente pela violência sexual que acontece, principalmente, dentro de casa. A título de comparação, a quantidade de vítimas registradas no ano passado é superior ao número de estudantes matriculados na maior escola da Grande Vitória.

Os crimes ligados ao abuso vão de violências explícitas até toques disfarçados de carinhos. Por isso, quando a Polícia Civil investiga os casos, às vezes — a maioria deles — precisa contar apenas com o relato da vítima. Quando os abusos acontecem, não há testemunhas. Ou pior: há outros integrantes da família que sabem e são omissos.

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Familiares, amigos e vizinhos: onde podem estar os abusadores?

O perfil do abusador de criança ou adolescente se repete em vários casos, segundo os dados da Polícia Civil. Seis a cada dez casos registrados nos 78 municípios capixabas envolvem indivíduos de confiança no ciclo de convivência das vítimas.

São pessoas que moram com a criança ou adolescente, às vezes familiares ou pessoas que têm acesso livre à residência. Os abusadores utilizam da proximidade, da intimidade e da confiança para cometerem os crimes.

Colocar a criança sentada no colo ou dar o conhecido “selinho”, por exemplo, podem ser sinais de algo mais grave, segundo explica a delegada titular da Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente, Thais Cruz.

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O caminho para as investigações é abstrato e delicado porque é preciso avaliar a intenção das ações.

Verificamos a intenção do suspeito, seja o pai, o padrasto ou qualquer homem ou mulher. Às vezes, a pessoa coloca a criança sentada no colo e fica se esfregando. Sempre vai ter algo a mais nos abusos. A gente consegue diferenciar e ver que tem ali a intenção de cometer um ato libidinoso, um objetivo sexual naquela conduta.

Thais Cruz, delegada titular da DPCA.

Em 2024, quase 62% dos casos aconteceram dentro das residências. A Grande Vitória é a região que mais contabilizou crimes de abuso sexual infantil, segundo dados do Observatório da Segurança Pública, da Secretaria de Estado da Segurança Pública (SESP). (Veja mapa detalhado do número de casos abaixo).

Omissão de familiares: o que motiva o silêncio?

Os policiais e defensores públicos do Estado que lidam diretamente com os casos de violência infantojuvenil ouvidos pela reportagem afirmam que a omissão de familiares sobre abusos de crianças e adolescentes são recorrentes.

Os motivos podem ser diversos. Muitas vezes, a mãe é apaixonada pelo suspeito e não percebe a gravidade dos atos ou deseja se separar. Em outras situações, há uma dependência financeira. O abusador pode ser quem sustenta a família e, por isso, os demais integrantes não têm coragem de denunciar.

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Em casos mais extremos, ocorre a ameaça. A vítima e parentes que querem denunciar são ameaçados de morte ou sofrem violência psicológica, de que a denúncia seria descredibilizada.

É muito comum que os agressores, sabendo da gravidade das agressões que cometem, ameacem as crianças e adolescentes vítimas dos abusos. Dizem que ninguém vai acreditar, ameaçam matar a mãe ou alguém próximo para que as vítimas não contem o que aconteceu. Por isso, algumas vítimas guardam por anos.

Renzo Gama Soares, defensor público e membro do Núcleo de Infância e Juventude da Defensoria Pública do Espírito Santo.

“Quero exame no IML para provar que não fiz nada”

O título dessa seção é uma frase comum em depoimentos de suspeitos de abuso, conforme conta a delegada Thais da Cruz. Isso porque nem todos os abusadores cometem penetrações ou violências que deixam marcas físicas passíveis de serem identificadas em exames.

“Quando o exame dá negativo, os abusadores podem falar: ‘Eu não fiz nada. Eu sou inocente’. Só que, muitas vezes, os abusos são toques nas regiões íntimas da vítima que nem sempre deixam marcas, mas também são crimes. Se a vítima for menor de 14 anos, é classificado como estupro de vulnerável qualquer tipo de ato libidinoso”, explicou.

Como identificar uma criança ou adolescente vítima de abuso?

Segundo a delegada Thais Cruz, as crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual infantil apresentam mudanças de comportamento que devem ser notadas pelos responsáveis. Ela pontua alguns sinais aos quais os pais, responsáveis, professores e todos os membros da sociedade que formam a rede de apoio devem ficar atentos:

  • Mudanças no comportamento: as vítimas costumam ficar retraídas, caladas, depressivas. Ou mesmo o oposto, ficarem mais agressivas e terem atitudes rebeldes;
  • Rendimento escolar: vítimas frequentemente têm uma redução significativa no rendimento escolar;
  • Dores e manchas pelo corpo: outro sinal de alerta pode ser o relato de dores e manchas sem explicações claras espalhadas pelo corpo ou regiões íntimas.

A internet também deve ser um ponto de atenção. As redes sociais são um território que precisa de vigilância constante dos pais. De acordo com a delegada, apesar de os crimes contra as vítimas do sexo masculino serem menos comuns, na web esse cenário costuma mudar.

O abusador utiliza falsos perfis e ganha confiança da criança para, então, pedir e enviar fotos íntimas. “Eles se valem de redes sociais e jogos para ter contato com a vítima. A maioria dos abusadores de meninos é homossexual”, explica.

Imagem ilustrativa. Foto: Reprodução/ Canva.

É preciso se indignar

Indignação é um sentimento comum de ser relatado ao se observar as denúncias registradas em cada cidade do Espírito Santo. A Serra lidera o número de casos. Em 2024, foram 197 registros de denúncias, conforme dados do Observatório de Segurança Pública do Estado. Cariacica somou 184 e é a segunda cidade capixaba com mais casos denunciados em 2024, seguida por Vila Velha, com 181, e Vitória, com 116 casos.

As quatro cidades da Grande Vitória registraram 45% do total de casos no ano passado. Apesar de elevado, todas elas tiveram queda nos registros em comparação com o ano anterior.

A redução é uma consequência das iniciativas de conscientização da população. Para a secretária de Assistência e Desenvolvimento Social do Estado, Cyntia Grillo, “conscientização” é palavra-chave quando se falam em políticas públicas contra os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes.

As crianças e adolescentes são um público que precisa ser protegido por diversas frentes. A assistência social é uma delas. No Estado, desenvolvemos ações no âmbito da conscientização, e aqui é importante frisar a importância do envolvimento de toda a sociedade capixaba, nesse grande desafio. O abuso infantojuvenil precisa estar no radar das pessoas todos os dias.

Durante o mês de maio, diversas ações são desenvolvidas para dar visibilidade e promover a educação social sobre o tema. Este domingo, 18 de maio, marca o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A data marca também a morte de Araceli Crespo, menina de 8 anos abusada e morta em 1973, em Vitória. Ninguém foi responsabilizado e condenado pelo crime.

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A dificuldade do Judiciário em julgar casos de violência infantojuvenil passa por diversos fatores. Atualmente, 6.349 processos sobre estupro de vulnerável estão pendentes de julgamento no Espírito Santo, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça.

O Estado tem 1.417 presos, sendo 1.043 homens e 23 mulheres condenadas. Outros 351 internos (345 homens e 6 mulheres) do sistema prisional capixaba ainda aguardam julgamento.

Entre os desafios para julgar casos de violência contra menores estão:

  • O reconhecimento do crime: muitas crianças não têm sequer noção de que foram vítimas de violência.
  • A denúncia: nem todas as famílias ou vítimas denunciam os abusos. Os motivos são diversos: medo, vergonha, dependência financeira ou emocional, etc.
  • As provas: em alguns casos, o estupro demora a ser denunciado, o que dificulta o recolhimento de provas científicas (DNA) ou são abusos cometidos sem marcas (verbal, toques, etc).

O defensor público Renzo Gama afirma, no entanto, que é preciso sempre denunciar qualquer suspeita. Nos últimos anos, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considera que a palavra da vítima em crimes sexuais, sobretudo contra crianças, tem valor probatório diferenciado. Isso significa que o depoimento pode bastar. O motivo está relacionado ao fato de que os crimes, na maioria das vezes, acontecem de forma clandestina, sem a presença de qualquer testemunha.

Foto: Divulgação/ Polícia Civil

Um desafio atual do poder público nesse aspecto é em relação ao chamado depoimento especial, que evita a revitalização das crianças e adolescentes abusadas sexualmente.

“A ideia do depoimento especial é para que a criança ou adolescente não seja vitimizado novamente. Ela passa a ser ouvida uma única vez, geralmente por um assistente social ou psicólogo, que faz as perguntas necessárias para a investigação e até defesa do suspeito por meio de instruções recebidas pela equipe de investigadores em um ponto eletrônico”, explica o defensor.

O problema é que a infraestrutura não é semelhante em todo o Estado. Em cidades do interior, por exemplo, nem todas as varas possuem esse sistema ou até mesmo salas acolhedoras e lúdicas. Há um esforço para esse movimento.

Às vezes, a criança ainda é ouvida uma, duas ou três vezes. O ideal seria que se conseguisse estruturar todo o sistema o mais breve possível. Porque, posterior ao ocorrido, surge outro grande desafio que é a preservação e proteção da vítima.

Renzo Gama Soares, defensor público e membro do Núcleo de Infância e Juventude da Defensoria Pública do Espírito Santo.

Caminhos para a prevenção e proteção de vítimas

Entre os caminhos para a prevenção dos abusos sexuais de crianças e adolescentes no Espírito Santo estão as ações integradas realizadas principalmente pelas secretarias estaduais e municipais de Assistência Social, Educação e Saúde. Juntas a outras ações, formam a rede de apoio que ajudam a criar, educar e proteger as crianças, como propõe o provérbio africano citado no início desta reportagem.

As ações sociais são desenvolvidas pelos municípios, cabe ao Estado coordenar. Nós incentivamos que todas as cidades capixabas tenham serviços de convivência, com atividades lúdicas e educacionais, para que as crianças estejam em um ambiente seguro após o horário escolar. A área da saúde também tem desenvolvido algumas ações, já que alguns casos chegam por lá. É responsabilidade de todos nós. A sociedade inteira precisa se unir para proteger essa geração.

Cyntia Grillo, secretária de Assistência e Desenvolvimento Social.

Entre as iniciativas estimuladas estão as voltadas para a educação sexual. O defensor público Renzo Gama, por exemplo, explica que há casos em que as crianças são vítimas e não reconhecem, justamente por não terem conhecimento de que toques físicos indesejados são errados. 

“A criança que já sofreu abuso por meio de toques ou mesmo estupro muitas vezes não sabe que é errado. Quando o tema é abordado, seja pelos pais, professores em aulas temáticas ou mesmo em reportagens e produtos de entretenimento, por exemplo, ela pode compreender que é errado e, se for uma vítima, reconhecer e denunciar.” 

Quando, infelizmente, não é possível evitar os crimes, é preciso proteger as vítimas. No Espírito Santo, existe a Ação Psicossocial de Orientação Interativa Escolar (Apoie), uma política pública que agrega um psicólogo e um assistente social nas unidades de ensino. Os profissionais são essenciais para ajudar na conduta dos educadores caso alguma criança ou adolescente relate um abuso.

Os municípios da Grande Vitória com maior número de casos nos últimos anos (Serra, Cariacica, Vila Velha e Cariacica) citados nesta reportagem afirmam que oferecem acompanhamento psicossocial por meio dos Centros de Referência de Assistência Social.

A porta de entrada para o atendimento ocorre, segundo as prefeituras, por meio de encaminhamentos realizados pelos serviços de saúde, educação, Conselho Tutelar, delegacias especializadas, Judiciário e Ministério Público.

Canais de denúncia de abuso sexual de crianças e adolescentes

Se você presenciar, suspeitar ou for vítima de abuso sexual infantil, é fundamental denunciar. O Brasil conta com diversos canais de denúncia, que garantem o anonimato e atuam na proteção de crianças e adolescentes.

  • Disque 100 – Disque Direitos Humanos: canal nacional e gratuito, com funcionamento 24 horas por dia. O atendimento é sigiloso e pode ser feito anonimamente. A denúncia é encaminhada para o Conselho Tutelar, Ministério Público e outros órgãos competentes.
  • Aplicativo “Direitos Humanos Brasil”: disponível para Android e iOS. Ele permite registrar denúncias e acompanhar o andamento.
  • Conselho Tutelar: presente em todos os municípios. Ele atua na proteção de crianças e adolescentes em situação de risco. Você pode procurar o Conselho Tutelar mais próximo para relatar o caso.
  • Polícia: denúncias podem ser feitas pela delegacia ou ainda pelo Disque-Denúncia 181. Em casos de crimes em andamento, a Polícia Militar pode ser acionada pelo telefone 190.
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