Apatia climática: um ano das enchentes no Rio Grande do Sul

Foi muito fácil eleger o povo gaúcho como paradigma de resiliência após as enchentes que destruíram o estado um ano atrás. Contudo, esse discurso que dominou as mídias sempre me causou certo incômodo que não conseguia compreender, talvez apenas agora tenha encontrado o motivo.

Neste início de maio, completa-se um ano das enchentes. É curioso como a nossa população não demorou muito para voltar a existir exatamente como antes. A impressão é que a vida retornou a operar como se absolutamente nada tivesse acontecido. Afinal, agora, com o estado precariamente reconstruído reconstruído, e a vida da grande maioria das pessoas se estabilizando, aparentemente nada mais temos a perder.

Será mesmo?

É claro que as motivações econômicas sempre foram centrais nos grandes acontecimentos do Rio Grande do Sul. No entanto, não é absurdo pensar que após um evento como esse, pelo menos um pouco dessa lógica mudaria. É espantosa a profunda apatia climática que voltou a imperar na sociedade em um espaço tão curto de tempo. Mais espantosa ainda é a conclusão que se pode tirar analisando as motivações do tamanho esforço empregado por órgãos públicos e privados a fim de reconstruir o estado.

Com o tempo, fica cada vez mais claro que todos os milhões de reais gastos, definitivamente, não foram por mero amor ou empatia, muito menos algo em prol do tão estimado sentimento de ser gaúcho. É nítida a tática maliciosa e perversa de construir esse discurso para encobrir o retorno às práticas que proporcionam esse desastre. O sentimento diariamente estimulado pelas mídias predominantes foi eficaz em conseguir anestesiar uma população que, de maneira inédita, começou a sentir as dores resultantes de suas próprias ações na natureza.

Os grandes empresários gaúchos – vulgo donos do estado – sabiam muito bem que seria muito mais fácil reconstruir de maneira rápida e prática tudo que foi destruído, do que lidar com uma sociedade enfurecida e revoltada com as perdas causadas majoritariamente em função das atitudes destes monopolizadores e usurpadores da natureza.

Ainda que a eficácia desse discurso tenha sido absoluta, não acho demais repetir quantas vezes for necessário o beabá realista dessa situação. A agricultura predatória que infesta este estado, concomitantemente com o governo gaúcho são, acima de qualquer fator natural, os responsáveis por toda tragédia, bem como pelo financiamento midiático de sensibilização, para criar novamente os mesmos corpos apáticos que constituíam a sociedade antes das enchentes. A eficiência imediata destes dispositivos de controle escancara como estamos, mais do que nunca, vulneráveis às manipulações das mídias que, para além de documentação de fatos, constroi, destroi e reconstroi narrativas em prol do seu interesse.

É claro que não há nada de inovador em dizer tudo isso. Mas é necessário chamar a atenção para o fato de que o espantoso já não espanta mais, como diria Modesto Carone. É inadmissível a maneira na qual a população permanece inerte a todos os acontecimentos ao seu redor. Em menos de um ano, tivemos avanços no projeto de construção do porto de Arroio do Sal; remanescentes de Mata Atlântica sendo depredados para construção de mais um mercado em Porto Alegre, além dos mais diversos crimes ambientais cometidos pelos fazedores de deserto, que se dizem agricultores deste estado.

Será mesmo que uma população forte e resiliente iria eleger novamente os mesmos representantes que financiaram o que proporcionou esse desastre? Algo me diz que não… É claro que nesse ponto não sou insensível às milhares de histórias de perda e superação particulares do estado.Mas, no sentido macropolítico, ainda agimos da mesma maneira.

Outro problema que surge, é que, quando estendemos a toda uma população o paradigma de resiliência a desastres climáticos, silencia-se ainda mais a questão. Pois, primeiro, inclui-se aqueles que permitem, financiam e lucram com as práticas que propiciam o acontecimento desses eventos; e segundo, coloca-se a natureza no banco de réus de grande vilã da história, distanciando ainda mais a relação já fragilizada, nós-ela.

A ciência é enfática em dizer que a economia de extração da vida natural não irá aguentar por muito tempo. E não tardará a chegar o momento em que nenhum dispositivo de controle será capaz de conter os desastres climáticos que acontecerão, não só no Rio Grande do Sul, mas no mundo todo. Estamos, diariamente, nos colocando em uma aposta na qual estamos destinados a perder. Portanto, relembrando a marcante frase “Está claro que a espécie humana não poderá continuar por muito tempo com a sua cegueira ambiental e com sua falta de escrúpulos na exploração da Natureza” , de José Lutzenberger, ex-presidente e cofundador da Associação Gaúcha de Proteção ao ambiente Natural (Agapan).

Talvez a cegueira ambiental possa ser substituída pela ideia de apatia ambiental ou apatia climática, pois, após manipular, utilizar e transformar a natureza ao limite, o século 21 já não consegue simplesmente não enxergar ou não sentir os impactos ambientais. Resta apenas ser apático.

Este fenômeno de apatia é algo que se apresenta através de diversas gerações, o que destroi com todo o suposto problema geracional impregnado no senso comum. No entanto, é fato que as novas gerações são menos reativas às questões do mundo, mas talvez esteja na hora de se perguntar quanto das gerações anteriores têm responsabilidade nisso. Afinal, como foi entregue o mundo para eles?

Respostas para essas questões talvez ajudem a motivar e a desparalisar aqueles que, de qualquer modo, terão que lidar com isso no futuro. Por fim, é necessário agir, pois pior que a antipatia a algo é a apatia ao mesmo. Pior do que tomar a decisão errada, é deixar que os outros tomem por nós.

* Graduando do curso de Licenciatura Plena em Filosofia, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria, Rio Grande do Sul. Membro da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan).

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.