
Continuar as reformas iniciadas pelo papa Francisco será um dos grandes desafios do novo pontífice, escolhido em conclave que deve ser realizado em maio (a data ainda não foi definida).
As mudanças, até então centradas na figura do argentino e no novo paradigma de líder que ele estabeleceu na Igreja Católica, precisam agora se manter com o seu sucessor, dizem especialistas. O pontífice morreu na segunda-feira, 21, um dia após participar das celebrações do domingo do Páscoa.
“Francisco era um líder diferente, que obrigava a estrutura a se adaptar pela força do seu exemplo, pelo tipo humano que representava. Como dizer que o Vaticano não tem que se desapegar de bens materiais quando o próprio papa abdicou do conforto?”, diz o sociólogo especialista em religião, Francisco Borba Ribeiro Neto, ex-coordenador do núcleo de Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), e editor dos cadernos de cultura e cidadania da Arquidiocese da capital paulista.
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Lidar também com um mundo repleto de tensões – como às ligadas a guerras, ascensão de líderes populistas e o aquecimento global – também será um problema para o novo comando da Santa Sé.
Veja os desafios que o novo papa terá
1. Imagem de Francisco
Será preciso conviver com o legado do papa. Jorge Bergoglio inaugurou e consolidou uma nova imagem de líder, marcada por simplicidade, transparência, popularidade e informalidade, em contraposição ao histórico de luxo da Igreja Católica. Estas características vão exercer pressão sobre a personalidade do novo papa e não será simples romper com elas, diz João Décio Passos, professor da PUC-SP.
Além disso, o argentino colocou os pobres no centro de suas preocupações e lançou um olhar de mais atenção para os países periféricos – Francisco se dizia como um cardeal buscado no “fim do mundo”.
2. Reformas da Igreja
Francisco impulsionou a modernização da estrutura do Vaticano, ainda em curso. “Em primeiro lugar, trata-se de garantir um sistema de compliance cada vez mais efetivo, coisa complicada numa organização que manteve o sigilo como modus operandi por séculos”, diz Borba Neto.
Há ainda a demanda por eficiência na aplicação do dinheiro, para poder cobrir os enormes custos das obras evangelizadoras e sociais pelo mundo e evitar desvios.
Além disso, é preciso observar a disciplina do clero e das ordens religiosas, às vezes abaladas por escândalos de abuso sexual de crianças e adolescentes, e lidar com rachas internos.
“Internamente há setores que se tornaram fundamentalistas, fizeram da religião uma coisa rígida e condenam os outros. Não tem nada a ver com o que Jesus pregava”, diz o padre e teólogo José Oscar Beozzo.
3. Meio Ambiente
Francisco se tornou referência mundial na temática ambiental, tanto do ponto de vista teórico quanto político. Seu esforço de marcar presença e influenciar as Conferências do Clima das Nações Unidas (COPs) foi uma marca do pontificado, que exigirá continuidade do sucessor, sob pena de ser acusado de omissão. “A questão ambiental é um desafio cada vez mais premente para a Igreja Católica”, diz Edin Sued Abumanssur, professor da PUC-SP e estudioso das religiões.
Um dos documentos assinados por Francisco foi a encíclica Laudato Si (Louvado Seja), marco na posição da Igreja sobre o meio ambiente. Lançado em 2015, ano do Acordo de Paris (pacto entre quase 200 países para frear as emissões de gases de efeito estufa), teve grande repercussão. O papa fala em “Casa Comum”, em referência ao planeta como lar compartilhado por todos e que precisa ser cuidado.
4. Homossexuais
“A aceitação dos homossexuais chegou a avançar com o papa Francisco, mas depois recuou”, afirma Abumanssur. O papa aprovou um documento em 2023 que permitia a benção a casais formados por pessoas do mesmo sexo, mas não em rituais religiosos, como o casamento. Seu acolhimento a homossexuais foi duramente criticado por alas conservadoras da Igreja, o que pode ser um entrave para o novo pontífice que quiser continuar essa abertura.
5. Participação de mulheres
Em mudança histórica, Francisco permitiu que mulheres votassem no Sínodo dos Bispos em 2023, instituição de aconselhamento ao pontífice e que discute as normas da Igreja. “É um nó dentro da igreja que precisa ser desfeito”, afirma o padre Beozzo, coordenador do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (Cesep).
Francisco também deu declarações importantes sobre o papel das mulheres e aumentou o número de funcionárias no Vaticano. Neste ano, por exemplo, nomeou a freira Simona Brambilla, prefeita do departamento responsável por todas as ordens religiosas da Igreja. Mas ainda não há no horizonte previsão para que elas sejam ordenadas, por exemplo.
6. Donald Trump
Medidas antimigratórias e cortes na ajuda a países vulneráveis adotadas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, se chocam com o pensamento da Igreja. Para Passos, da PUC-SP, o chefe da Casa Branca continuará “fazendo estragos econômicos e políticos no planeta e o próximo papa enfrentará o desafio de se posicionar perante as consequências das posturas dele, tendo de ir além das posturas diplomáticas muito típicas da Santa Sé”.
7. Guerras
Outro desafio será manter o forte posicionamento de Francisco contra os conflitos e guerras atuais. O papa estabeleceu diálogos tanto com russos como ucranianos para que se chegasse a um acordo de paz. E ainda reuniu-se igualmente com parentes israelenses de reféns mantidos pelo Hamas e com os de palestinos de Gaza, para onde ligava toda noite e pedia atualizações para o reverendo local. Em seu último discurso, no domingo de Páscoa, pediu mais uma vez: “declarem um cessar-fogo, libertarem os reféns e ajudarem um povo faminto que aspira a um futuro de paz”.
8. Liberdade religiosa e diálogo com outras crenças
Também professor da PUC, o especialista em Ciência da Religião Wagner Lopes Sanchez diz que o escolhido terá de aprofundar o diálogo com outras religiões iniciado por Francisco e manter a universalidade da Igreja, aberta a todas realidades e pessoas.
Além disso, na medida em que o catolicismo avança na África e na Ásia, a garantia da liberdade religiosa se torna cada vez mais essencial. “Levantamentos internacionais citam anualmente mais de 4 mil cristãos mortos e mais de 50 mil casos de abusos físicos ou psicológicos contra cristãos no mundo”, diz Borba Neto.