Medo do Escuro: de brincadeira no colégio a localização do corpo, como foram últimas horas de João Paulo


João Paulo Brancalion, de 9 anos, foi encontrado morto dentro de freezer em uma escola católica tradicional de Piracicaba, em 1989. Amigo, ex-estudante do colégio e jornalistas relembram tragédia. Caso João Paulo: Veja reportagens da época do crime e entrevista com amigo da vítima
Sábado, 16 de dezembro de 1989. Era a véspera do 2º turno das primeira eleições presidenciais diretas no Brasil depois de 29 anos. Mas o clima eleitoral em Piracicaba (SP) naquele final de semana também dividiria espaço com uma tragédia, tema do podcast investigativo “Medo do Escuro – O Caso João Paulo”, que o g1 lançou nesta quarta-feira (31) e terá episódios semanais. Esta reportagem reconstitui as últimas horas do garoto João Paulo Brancalion, que na época tinha 9 anos.
O texto abaixo contém revelações sobre o primeiro episódio do podcast. A recomendação é ouvi-lo antes (acesse o link abaixo) e ler a reportagem depois.
Quem era João Paulo?
João Paulo Brancalion, de 9 anos, era filho único e tinha acabado de concluir a 3ª série do primeiro grau, que hoje é chamado de ensino fundamental. Baixo e magro, ele era estudioso quando precisava, simpático e cercado de amigos.
“Eu gostava bastante dele, era uma pessoa bem divertida, bem alegre. Gostava, como todo moleque, de aprontar, de brincar, jogar bola, de fazer todas essas atividades saudáveis de criança. Esportes ele gostava bastante. Gostava mesmo de jogar bola, de espiribol também. Espiribol era o jogo predileto”, conta Assis Fernando de Mello, que era amigo próximo de João Paulo.
João Paulo Brancalion tinha concluído a 3ª série na época do crime
AcervoEP
O garoto era estudante do colégio Dom Bosco e, nos finais de semana, também frequentava o Oratório São Domingos de Sávio de Assistência ao Menor, popularmente conhecido como oratório festivo, que era um projeto que oferecia atividades esportivas, de lazer e religiosas para as crianças da comunidade dentro da escola.
Pais de alunos e outros membros da comunidade atuavam como voluntários do projeto.
Assis Mello, amigo de João Paulo, estava em almoço de domingo quando corpo foi localizado
Rodrigo Pereira/ g1
Sábado, 10h:
João acordou e os pais dele já tinham ido trabalhar. Como de rotina, foi para a casa de sua avó Emília, mãe do seu pai, para tomar café da manhã. Ele era um grande companheiro da avó, que já era viúva.
Sábado, 12h:
O garoto voltou para sua casa e de lá seguiu para a casa de seu amigo Tiago para brincar.
Sábado, 13h30:
O menino foi até o salão de beleza onde trabalhava sua mãe, Zilda. Ele pediu dinheiro, mas ela disse que não tinha. Depois, tentou pegar sua bicicleta, que estava com seu tio Sidney, mas acabou seguindo a pé para seu destino, que era justamente o oratório festivo do colégio onde estudava.
Sábado, 14h:
Segundo o porteiro da escola, foi nesse horário que João chegou ao local. Ao chegar, segundo ele, o menino pediu materiais para jogar espirobol.
Sábado, 14h às 17h:
João Paulo foi visto no oratório por diferentes pessoas que estavam no local.
Espaços do Colégio Dom Bosco eram utilizados para as atividades esportivas do oratório
AcervoEP
Sábado, 20h:
Mãe de João Paulo, Zilda voltou para casa, depois do trabalho, naquele sábado. O filho ainda não tinha chegado, mas ela acreditava que ele estava com o pai, que tinha saído de casa por volta das 18h.
Sábado, 22h:
O garoto ainda não tinha chegado. Então, Zilda foi até a casa da sogra, viu que o João Paulo não estava lá. Em seguida, pediu que um sobrinho fosse até um bar onde estava seu marido Antonio, conhecido como Toninho, para ver se João Paulo estava lá. Mas também não estava.
Preocupados, os pais começaram a realizar buscas e ir até os últimos destinos do filho. Foram à casa de Assis e também de outro amigo do garoto, chamado Tiago, mas também não o encontraram. Foram ainda ao Dom Bosco, mas o colégio já estava fechado.
Sábado/domingo, 22h às 6h:
As buscas atravessaram a noite, nos arredores do colégio, hospitais, polícia, guarda municipal, comissariado de menores e emissoras de rádio da cidade.
Domingo, 11h15:
Como ainda não tinham encontrado o filho, os pais registraram um boletim de ocorrência comunicando o desaparecimento, no dia seguinte. Veja trecho do documento abaixo:
Trecho do boletim de ocorrência sobre o desaparecimento de João Paulo
Reprodução
Domingo, 14h30:
Sidney, um dos tios de João Paulo, foi comunicado por telefone sobre a localização do corpo do garoto.
A família foi imediatamente até a escola, onde já tinham policiais e o portão estava fechado. Toninho, pai de João Paulo, foi impedido de entrar e ver onde estava o filho.
Zilda preferiu não entrar e recebeu a notícia em uma praça em frente ao colégio onde ficou sentada: João Paulo tinha sido encontrado morto dentro de um freezer desativado no colégio onde estudava, pouco antes de um almoço de Natal que seria servido no local para os frequentadores do oratório.
Um voluntário do oratório disse que encontrou o corpo pouco antes do almoço festivo de domingo, quando foi procurar refrigerante no freezer.
Freezer onde foi encontrado o corpo de João Paulo
Reprodução/ Poder Judiciário
Domingo, 15h15:
O boletim de ocorrência onde havia sido informado o desaparecimento recebeu um adendo, confirmando a localização do corpo, detalhando que João estava apenas de cueca e suas roupas foram encontradas arrumadas ao lado do corpo. Esse complemento também informa que foram localizados ferimentos no garoto.
Assis tinha ido ao colégio para o almoço de Natal e relembra a transformação do clima festivo em um ambiente de tensão.
“Em certo momento, eu percebi que começaram as pessoas a ser dispensadas, começou a dar um clima um pouco diferente […] E aí, foi logo no período após o almoço, à tarde, já estava um alvoroço de gente assim, em frente ao colégio. Foi uma coisa assim muito chocante pra todo mundo, porque ninguém imaginava nem como aquilo tinha acontecido. E aí depois a gente foi saber que era nosso amigo, o João Paulo. Foi apavorante, aquela coisa de você falar: ‘não acredito, como assim?’”, relembra o amigo de João Paulo.
Colégio onde João Paulo estudava
AcervoEP
Em nota ao g1, o Colégio Dom Bosco afirmou que “se pauta pela transparência nas relações mantidas com os diversos públicos” e “tem uma trajetória de posicionamento ético nas mais diversas situações”.
E informou que a atual diretoria da instituição assumiu as atividades em 2021 e, sempre que solicitada, tem se pronunciado sobre as mais diversas questões que envolvam o colégio e toda a comunidade escolar.
Em relação à morte de João Paulo, apontou que se solidariza com a dor dos familiares e amigos e que sempre prestou auxílio à família e às autoridades.
Sapatos e roupas de João Paulo foram encontrados arrumados ao lado do corpo
Reprodução/ Poder Judiciário
13 anos até um julgamento
O julgamento do caso levou 13 anos para acontecer, após cerca de 300 depoimentos. Foi o júri mais longo da história de Piracicaba até aquele momento, com dois dias inteiros de duração.
E 20 anos após esse julgamento, em 2023, o g1 teve acesso a toda investigação policial e às ações criminal e cível deste caso. Em suas 1,8 mil páginas, elas revelam trocas de delegados, laudos com conclusões diferentes, investigação recomeçando do zero, depoimentos contraditórios, relatos de pressão contra testemunhas, especulações e boatos.
Os autos também mostram cobranças da sociedade por uma conclusão, pessoas entrando e saindo da lista de suspeitos, supostas pistas que não levavam a lugar algum – como hipóteses de rapto e assassinato para queima de arquivo – e até a tese sobre a existência de um serial killer de crianças.
Além disso, o g1 traz entrevistas exclusivas com quem teve relação com o caso, que mostram os impactos emocionais que a tragédia ainda causa e também informações inéditas sobre supostas falhas em uma das fases das investigações e uma nova versão de uma das testemunhas-chave.
Esses desdobramentos serão mostrados nos próximos episódios dessa série.
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