Orfeu da terra: o pequeno agricultor como herói trágico invisível da sociedade brasileira

Na mitologia grega, Orfeu é o músico encantador que, com sua lira, comoveu até os deuses do submundo em sua tentativa desesperada de resgatar Eurídice do reino dos mortos. Sua arte, expressão máxima de sensibilidade e vida, não foi suficiente para vencer as regras cruéis do destino. No Brasil contemporâneo, em meio à vastidão do campo, surge um novo Orfeu: o agricultor familiar, cuja lida com a terra transforma a natureza em alimento, cultura e resistência, mas cuja existência é ignorada, oprimida e sistematicamente marginalizada. Este texto propõe uma analogia entre a tragédia clássica de Orfeu e a realidade silenciosa dos agricultores familiares brasileiros, revelando como ambos são protagonistas de uma luta trágica contra estruturas que negam sua relevância.

Orfeu não era guerreiro, tampouco político. Era artista. Sua força vinha da beleza que criava, da harmonia entre homem e natureza. Sua descida ao Hades, em busca da amada Eurídice, é o gesto desesperado de alguém que recusa o destino imposto, que luta contra a morte com a arma mais humana que existe: a esperança. Mas o trágico da fábula reside no sistema implacável que governa o mundo subterrâneo. Orfeu é traído por uma regra silenciosa, por um olhar impaciente, por uma falha de confiança, e sua amada lhe é tirada para sempre.

O agricultor familiar brasileiro é um Orfeu que canta com enxada e sementes. Responsável pela maior parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, cultiva a vida em um sistema que, paradoxalmente, o desvaloriza. Vive no limite da economia, nos interstícios da política pública, nas beiradas da modernização tecnológica. Sua arte está nos saberes passados de geração em geração, na agroecologia espontânea, no manejo do solo com respeito e no cuidado com a biodiversidade. No entanto, é constantemente relegado ao esquecimento pelo Estado, pelo mercado e, muitas vezes, pela própria sociedade que dele depende.

Para Orfeu, Eurídice era a razão de viver, símbolo do amor perdido e da plenitude. Para o agricultor familiar, sua Eurídice é a terra fértil, a vida digna no campo, o reconhecimento público, a permanência rural com autonomia e prosperidade. Mas essa Eurídice lhe escapa todos os dias: nos financiamentos negados, na assistência técnica inexistente, na logística precária, nas políticas voltadas à monocultura exportadora. Como Orfeu, o agricultor vê seu sonho ser arrancado pelas forças que regem um sistema excludente e indiferente à sua sensibilidade e valor.

Na fábula, o olhar de Orfeu para trás sela o destino de Eurídice. Na analogia rural, esse olhar pode ser lido como a esperança fraturada do agricultor ao esperar, por décadas, políticas públicas que jamais chegam; ou como a desconfiança que o faz migrar para a cidade, abandonando o campo, suas raízes e sua vocação. É o gesto de quem, sem alternativas, precisa olhar para trás e admitir a perda de sua terra, de sua juventude, de sua força produtiva e de seus filhos para a cidade. Como Orfeu, o agricultor não perde por falta de mérito, mas por excesso de abandono.

A tragédia maior do pequeno agricultor não é a seca, nem a dificuldade de produção, mas a invisibilidade social. Ele é o herói trágico que não tem plateia. Suas dores são silenciadas, seus sucessos apagados, seu protagonismo ignorado em um país que o empurra para as margens em nome do “desenvolvimento”. Essa marginalização revela uma sociedade que valoriza o volume da produção, mas despreza o valor simbólico, cultural e ecológico de quem a realiza.

Contudo, há esperança. O agricultor familiar resiste. Seu canto não é apenas lamento, mas também celebração. Ele reaparece em feiras agroecológicas, em associações comunitárias, em quintais produtivos, em escolas do campo. Quando apoiado, demonstra potencial para regenerar não apenas ecossistemas, mas também vínculos sociais, territórios e economias locais. Seu trabalho carrega um saber ancestral, uma estética de convivência e uma ética da terra que precisam ser reconhecidas como parte do futuro, e não do passado.

“Orfeu da terra” é a metáfora do Brasil profundo, que canta para não desaparecer. O pequeno agricultor familiar é o novo Orfeu, que desce diariamente ao Hades do descaso e, com suas mãos, tenta resgatar a Eurídice da soberania alimentar. Mas a sociedade, como os deuses antigos, impõe provas cruéis e permanece indiferente ao seu valor. Cabe a nós, como comunidade nacional, reconhecer esse canto, valorizá-lo, protegê-lo e garantir que sua música não se perca no silêncio da omissão.

*Afonso Peche Filho é pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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