Saúde mental em colapso: adoecimento avança entre servidores públicos do RS

A saúde mental dos servidores públicos do Rio Grande do Sul está em estado de alerta. Dados nacionais mostram um crescimento alarmante dos afastamentos por transtornos psíquicos.

Em 2024, mais de 472 mil trabalhadores brasileiros precisaram se afastar por motivos relacionados à saúde mental, segundo o Ministério da Previdência Social. Isso significa o maior número de afastamentos da última década. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que os transtornos mentais causam a perda de 12 bilhões de dias úteis por ano no mundo, gerando um prejuízo global de 1 trilhão de dólares.

No estado, apesar das ações institucionais anunciadas pelo governo, professores, profissionais da saúde e lideranças sindicais denunciam que a realidade pouco mudou: continuam a enfrentar jornadas exaustivas, desvalorização salarial, ambientes adoecedores e até situações de violência.

“O adoecimento não é mais um episódio pontual, é um processo cotidiano”, afirma a presidenta do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (Cpers Sindicato), Rosane Zan. Ela alerta para os impactos da sobrecarga e da falta de apoio à categoria docente. Entre os principais sintomas relatados por professores estão ansiedade, estresse crônico, depressão e a síndrome de burnout. Já na área da saúde, a situação é agravada por episódios frequentes de agressão, conforme revelam dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen): 70% dos profissionais de enfermagem no país já sofreram algum tipo de violência no trabalho.

“A promoção da saúde mental, mais do que um cuidado individual, se trata de um compromisso coletivo. Devemos nos atentar para identificar e não se calar diante das pequenas violências diárias”, orienta a psicóloga organizacional Mayra Medeiros Osório, do Conselho Regional de Psicologia (CRP/RS).

O governo estadual afirma que tem investido na ampliação de programas de acolhimento e cuidado, e promete para o segundo semestre de 2025 a publicação da Política Estadual de Saúde e Segurança no Trabalho. Porém, nas escolas, nas unidades de saúde e nas secretarias, a sensação entre os trabalhadores é de que o cuidado ainda está distante do cotidiano.

Diante desse cenário, a realização da 4ª Conferência Estadual de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, prevista para ocorrer entre maio e junho de 2025, ganha ainda mais relevância. Um dos principais eixos de debate será justamente a saúde mental dos trabalhadores do SUS e dos servidores públicos em geral. A expectativa da organização é que o evento funcione como espaço de escuta, denúncia e proposição de políticas públicas que realmente alcancem quem está na base do serviço público.

“A saúde pede socorro”: o colapso e o adoecimento dos profissionais nas UPAs

A pandemia da covid-19 colocou os profissionais de saúde no centro das atenções, com palmas nas janelas e discursos de reconhecimento. No entanto, como alerta a diretora do Sindicato dos Enfermeiros do Rio Grande do Sul (Sergs), Claudia Stein, a valorização deu lugar ao esquecimento. “Nós estamos doentes e sobrecarregadíssimos”, desabafa.

Stein relata que agressões físicas, verbais e até abusos sexuais fazem parte do cotidiano nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). “Já teve funcionária esfaqueada, guarda ferido, equipamentos destruídos e, o mais revoltante, funcionárias apalpadas por pacientes. A enfermagem é majoritariamente feminina, e isso nos coloca ainda mais vulneráveis.”

“Nós estamos doentes e sobrecarregadíssimos”, desabafa Claudia Stein – Foto: Jorge Leão

Além da violência cotidiana, a superlotação constante transforma o ambiente de trabalho em um espaço de tensão permanente. A UPA em que Stein trabalha, com capacidade para 17 leitos, já chegou a abrigar mais de 70 pacientes internados aguardando regulação para hospitais. “A gente segura o paciente 10, 15 dias. Quando deveria ser no máximo 24 horas.”

O estresse não vem só da estrutura precária, mas também da forma como os profissionais são tratados. A enfermeira denuncia a visita de um vereador à UPA, feita de forma truculenta e midiática: “Ele invadiu os consultórios, violou o sigilo médico, impediu o atendimento, expôs profissionais, chamou a Brigada Militar. Gerou caos”.

A consequência imediata foi o agravamento da saúde mental da equipe: “O médico invadido precisou se afastar, o enfermeiro teve uma crise emocional. Eu mesma faço tratamento psiquiátrico desde 2020, depois que perdi uma colega na pandemia. Muitos outros também adoeceram”.

Segundo dados do Conselho Federal de Enfermagem, 70% dos profissionais já sofreram algum tipo de violência no exercício da profissão. Stein, que atua há 31 anos na enfermagem, conta que foi agredida fisicamente por um familiar de paciente até desmaiar. “Até hoje, quando entro na sala de triagem, penso na rota de fuga”, revela.

A estrutura das UPAs, originalmente pensada para casos de urgência e emergência (classificações vermelha, laranja e amarela), se tornou o único acesso de muitos à saúde pública. “Gente com dor crônica, calo inflamado, que não quer ir ao posto… tudo acaba na UPA. Muitos estão carentes de acolhimento. Mas isso sobrecarrega e invisibiliza quem precisa de socorro imediato.”

A desinformação agrava a situação. “A população vê um profissional sentado com papéis e acha que ele não está fazendo nada. Não imagina que ele está monitorando sete ou oito pacientes ao mesmo tempo.”

Stein também questiona o funcionamento da regulação de leitos via Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). “Já recebemos paciente entubado, de ventilação mecânica, vindo direto do Samu. A UPA não tem estrutura para isso. O Hospital Conceição é a cinco minutos daqui”, relata.

Para ela, é preciso mais do que reconhecimento simbólico. “Fecharam emergências em vários hospitais. Sobra tudo para a UPA. O que a gente precisa é de contratação, estrutura, regulação eficiente e segurança. A saúde pede socorro, e nós, profissionais, também.”

Profissionais da educação relatam sobrecarga, violência institucional e falta de apoio psicológico

A crise da saúde também se espalha entre outras categorias. A saúde mental dos servidores públicos tem ganhado contornos alarmantes no Rio Grande do Sul, especialmente entre trabalhadores da educação. A realidade nas escolas públicas do estado revela um cenário de adoecimento, sobrecarga e ausência de políticas efetivas de acolhimento psicológico.

“Os trabalhadores em educação precisam urgentemente de acompanhamento psicológico, e cabe ao governo garantir condições para isso”, afirma a direção do Cpers Sindicato. Segundo a entidade, embora ainda não existam dados sistematizados, os relatos de afastamentos por doenças mentais são numerosos.

A denúncia é reforçada pela atuação do Departamento de Saúde do Trabalhador do Cpers e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), que têm observado o agravamento das condições de saúde mental nas escolas. “Temos recebido cada vez mais relatos de colegas afastados por depressão, crises de ansiedade, síndrome de burnout. O ambiente escolar tem sido adoecedor”, completa a direção sindical.

Para compreender melhor esse cenário, o Brasil de Fato RS ouviu a psicóloga Mayra Medeiros Osório, presidenta da Comissão de Psicologia Organizacional e do Trabalho do Conselho Regional de Psicologia do RS (CRP/RS). Ela destaca que a saúde mental é impactada pela interação entre indivíduo, condições de vida e de trabalho – e que o atual modelo de gestão pública, marcado por pressões, metas abusivas e falta de canais de escuta, tem produzido sofrimento.

“O trabalho pode se tornar um ambiente de vulnerabilidade e adoecimento quando há sobrecarga, violência institucional e ausência de espaços para o diálogo. A naturalização dessas situações é preocupante”, explica Osório.

Segundo a psicóloga, sinais como perda de motivação, dificuldade de concentração, irritação constante, absenteísmo e até sintomas físicos frequentes podem indicar que algo está errado. O problema, diz, é que ainda há muito estigma em torno do sofrimento psíquico, especialmente quando ele se relaciona com o trabalho.

Outro ponto de alerta é o recorte de gênero e raça. “As mulheres negras estão entre as mais afetadas pelo assédio moral nos ambientes de trabalho, o que reflete o racismo estrutural e o machismo institucionalizado”, pontua.

“O trabalho pode se tornar um ambiente de vulnerabilidade e adoecimento quando há sobrecarga, violência institucional e ausência de espaços para o diálogo”, enfatiza Mayra Medeiros Osório – Foto: Jorge Leão

Para evitar que o trabalhador retorne ao mesmo ambiente que o adoeceu, é preciso uma transformação estrutural. “Não podemos naturalizar o sofrimento como parte do trabalho. Precisamos de ambientes que respeitem a dignidade humana e promovam relações saudáveis”, defende Osório.

Ela destaca a importância de ações institucionais como rodas de conversa, programas de acompanhamento, capacitação de gestores e criação de espaços coletivos de acolhimento. “Promover saúde mental é compromisso coletivo. É também dever das instituições públicas zelar pela integridade dos seus trabalhadores.”

Estado diz investir em acolhimento e prevenção

Diante das denúncias e reivindicações de categorias como os trabalhadores da educação e da saúde, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul aponta a existência de programas e ações voltadas à promoção da saúde mental no serviço público estadual. O Programa de Saúde dos Servidores Públicos (Proser), instituído em 2017, é um dos principais instrumentos citados, oferecendo acolhimento, orientação e encaminhamentos por meio de núcleos localizados em diferentes secretarias.

Nos últimos anos, o governo afirma que ampliou a agenda de iniciativas institucionais. Em 2022, a Política de Gestão e Desenvolvimento de Pessoas incluiu o eixo “Qualidade de Vida” como um dos pilares da atuação. Já em 2024, foi criado um Grupo de Trabalho Multidisciplinar para a elaboração da Política Estadual de Saúde e Segurança no Trabalho, prevista para ser lançada no segundo semestre de 2025.

Entre as ações práticas, o Executivo menciona desde ginástica laboral e academia no Centro Administrativo Fernando Ferrari (Caff) até campanhas de sensibilização e palestras com especialistas. Após as enchentes de maio de 2024, foram oferecidos grupos de acolhimento psicológico e publicado o “Guia Saúde Mental e Desastres”.

O governo afirma ainda acompanhar os dados sobre afastamentos por transtornos mentais e aposta na qualificação das chefias para garantir ambientes laborais mais saudáveis. Um dos pontos destacados é a atuação da Ouvidoria Geral do Estado como canal de denúncias e suporte a situações de assédio moral e outras violências no trabalho.

A Secretaria Estadual da Educação afirma desenvolver projetos específicos, como o “Mente Viva” e parcerias com plataformas de suporte psicossocial, além da presença de assistentes sociais e psicólogas nas escolas.

Apesar das ações anunciadas, a promessa de maior investimento em políticas estruturantes só deve se concretizar com a nova política estadual de saúde no trabalho. Enquanto isso, categorias como a do magistério denunciam uma crescente precarização das condições de trabalho e aumento nos casos de adoecimento mental, sem que haja resposta efetiva à altura.

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