A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik denunciou, em entrevista ao Conexão BdF, do Brasil de Fato, a “política de guerra contra moradores de baixa renda” adotada pelo governo de São Paulo para a remoção das quase mil famílias que vivem na favela do Moinho, no Centro da capital. A especialista expôs os diversos mecanismos de desumanização e pressão adotados pela gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) para forçar a saída da comunidade, sem oferecer alternativas reais e adequadas de moradia.
Segundo ela, a estratégia de reassentamento apresentada pelo governo paulista, baseada em crédito hipotecário subsidiado pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), ignora a realidade concreta das famílias que vivem no local. “Um levantamento da própria CDHU mostra que mais de 60% das famílias que vivem ali têm renda inferior a um salário mínimo mensal. É uma renda muito marcada pela informalidade, ou seja, com bastante oscilação. Então é evidente que essa população não pode acessar crédito hipotecário porque vai acabar se endividando, perder suas casas e voltar para a rua, como já tem acontecido em conjuntos habitacionais de São Paulo”, afirma.
Mesmo para os poucos moradores com condições de assumir o financiamento, o modelo desconsidera a importância do vínculo com o território. Muitos sustentam suas famílias com comércios locais ou com atividades nas proximidades, como coleta de recicláveis no centro. “Apesar do que diz o governo, a imensa maioria das unidades habitacionais oferecidas não está no Centro, mas sim em bairros periféricos como Itaquera. Isso inviabiliza a continuidade da vida dessas pessoas.”
A urbanista também revelou que assistentes sociais estariam orientando moradores a inflar sua renda no cadastro para se encaixar nas regras da CDHU, mesmo que isso os coloque em risco de inadimplência futura. “Elas sabem que, se a pessoa declarar ‘minha renda é zero’ ou ‘meio salário mínimo’, ela automaticamente fica fora do atendimento. E como não existe nenhuma alternativa para quem fica fora do programa, existe essa pressão. Na hora de assinar um contrato de crédito hipotecário, essas pessoas vão acabar excluídas do mesmo jeito.”
Verdadeira motivação é ‘limpeza étnica e social’, diz urbanista
A proposta de remoção do Moinho também se conecta a um projeto maior do governo Tarcísio: a instalação do novo Centro Administrativo nos Campos Elíseos na região central, para reunir secretarias do estado — muitas já no Centro Histórico, pontua Rolnik. A arquiteta denuncia que o plano é parte de uma tentativa de expulsar população pobre e preta do centro, liberando terreno para o avanço da especulação imobiliária. “É uma limpeza étnica e social. O Moinho e o território popular dos Campos Elíseos são hoje o último obstáculo para que essa frente de expansão possa avançar.”
Na última semana, o governo estadual anunciou a demolição das casas de moradores que aderiram ao programa, mesmo sem ter posse legal do terreno, que pertence à União. A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) já afirmou que não há autorização para intervenções no local enquanto não houver acordo justo e pacífico com a comunidade. Segundo o órgão, “as informações até agora disponíveis ainda não são claras sobre o endereço efetivo e o prazo de entrega dessas unidades.”
“Estão transformando o Moinho em terra arrasada. Jogam bombas, enviam polícia todo dia, deixam casas em escombros, colam avisos de remoção nos carros. É uma política de guerra, mas uma guerra contra moradores de baixa renda, que não tinham onde morar e que vivem na última favela do Centro de São Paulo”, conclui Rolnik.
De acordo com a especialista, “constrói-se uma ideia de desumanização ao criminalizar os moradores. […] Essa estigmatização abre espaço para que o Estado adote comportamentos extralegais, desrespeitando os direitos dessas pessoas.” Essa análise é compartilhada por Cíntia Bonfim da Silva, moradora da favela do Moinho e dona de uma pequena padaria no local, que relata crises de ansiedade desde que foi induzida a assinar o acordo de saída da comunidade, segundo denuncia.