Prostitutas dizem que são impedidas pela GCM de trabalhar na calçada da Estação da Luz


Segundo especialista, não existe nenhuma justificativa dentro da lei que permita que essas mulheres sejam retiradas de um espaço público. A Prefeitura de São Paulo informou que não recebeu nenhuma denúncia sobre o caso. Homem encostado no paredão da Estação da Luz, na saída da Rua Cásper Líbero.
Deslange Paiva/ g1
Acordar, tomar café da manhã, arrumar a casa e sair para trabalhar, assim como diversas pessoas, esta é a rotina de Regina*, que vive na Zona Leste de São Paulo e vai todos os dias para o Centro da capital.
Mas, nas últimas duas semanas, ela está sendo retirada de seu posto de trabalho pela Guarda Civil Metropolitana (GCM). Regina é prostituta, tem 30 anos e, há dez, tem como ponto a Estação da Luz.
“As mulheres não podem encostar no paredão, mas os homens podem. Eles [GCM] alegam que tem uma câmera de segurança e que, se as mulheres ficarem, atrapalha a visão. Já argumentaram também que a nossa presença por lá pode atrair os usuários da Cracolândia, também não entendi esse ponto. Teve menina que foi até ameaçada de prisão, se não saísse”, afirma.
Questionada pelo g1 sobre as abordagens, a Prefeitura de São Paulo informou que não recebeu nenhuma denúncia sobre o caso.
Prostituição não é crime no Brasil. A profissão consta na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) no verbete “profissional do sexo”, com o número 5198. Mas vira crime quando uma terceira pessoa tira proveito da prostituição, o que pode caracterizar exploração sexual.
De acordo com a advogada Thais Monteiro, advogada e membro da Comissão de Advocacia Criminal da OAB-SP, não existe nenhuma justificativa dentro da lei que permita que essas mulheres sejam retiradas de um espaço público. Além disso, a medida fere o direito delas de ir e vir.
A antropóloga Ana Braga Azevedo relembra que o governo tenta ‘afastar’ profissionais do sexo da região da Luz desde os anos 40, antes da ditadura militar.
Mulheres ouvidas pelo g1 informaram que não podem ficar paradas no saguão da estação nem no paredão, no entorno do local.
As mulheres que atuam na área se dividem territorialmente entre:
Estação da Luz
Rua Cásper Líbero
Parque da Luz
O g1 esteve no local na terça-feira (12). Segundo as mulheres ouvidas, essa situação começou a ocorrer nas últimas duas semanas. Na saída da estação para a Rua Cásper Líbero, local com diversos hotéis e bares, onde também ficam prostitutas, há uma viatura e uma base da GCM.
“Geralmente são dois guardas, mas varia muito. Eles ficam na frente da estação. O jeito que eles abordam já tem uma truculência, a gente fica com medo, eles proíbem de encostar em qualquer lugar no entorno da estação”, afirma Regina.
Aline*, de 40 anos, também foi abordada por agentes quando estava saindo da estação. “Eu estava saindo do metrô, do saguão da Luz e, por acaso, tinha um cliente meu. Parei para falar com ele, cumprimentei normalmente, e um guarda se aproximou e disse que eu não poderia ficar parada ali porque atrairia o pessoal da Cracolândia.”
“Fiquei sem saber o que fazer, não tive muito o que argumentar e me retirei. Eu nem estava na intenção de parar ali, aquele local não é o meu ponto e ainda assim fui abordada. Os homens ficam parados e, quando uma mulher encosta, eles vão abordar. Isso que não dá para entender”, completa.
Aline diz que começou na prostituição com 18 anos. Ela tem ponto há 8 anos na região da Luz.
“Me preocupa porque começa dessa forma. Tira da Luz, depois querem tirar do parque, e a gente vai fazer o quê? Para mim, o que está acontecendo é uma tentativa de ‘limpeza’ da região, eles estão incomodados com a nossa presença. Querem novos moradores aqui [no Centro velho], e a nossa presença incomoda, ninguém quer morar no lugar que tem trabalhadora sexual. Sair eu não quero, mas, se mandarem, eu não posso dizer nada nem me recusar”, afirma.
Trabalhadora do sexo ouvida pelo g1
Deslange Paiva/ g1
As mulheres ouvidas pelo g1 não denunciaram as abordagens por ter medo de sofrer represálias. Mas elas afirmaram que, com a ação dos agentes, a quantidade de prostitutas que ficavam no entorno da estação já está reduzida. Muitas das trabalhadoras foram para dentro dos bares ou para a frente dos hotéis, o que aumenta a rivalidade entre o grupo.
A vida secreta das prostitutas veteranas que trabalham em parque histórico de São Paulo
Elas procuraram o Coletivo Mulheres da Luz, organização com sede dentro do Parque da Luz que oferece acolhimento psicológico, assistência social, oficinas e aulas de alfabetização para mulheres em situação de prostituição na região.
“A gente atende por volta de 400 mulheres mensalmente, mas é bem rotativo. A maioria está em extrema vulnerabilidade e a faixa etária aqui é entre 30 e 78 anos. Algumas são da periferia e vêm para o Centro oferecer trabalho sexual, outras moram em ocupações aqui na região. Essas mulheres estão numa profissão que é sempre, historicamente, vista de uma forma mais negativa do que positiva. Elas não acreditam que tem como exigir direito, por isso não tem denúncia”, afirma Thamiris Suellen dos Santos, coordenadora do Coletivo Mulheres da Luz.
Thamiris Suellen dos Santos, coordenadora da ONG Mulheres da Luz
Deslange Paiva/ g1
Segundo Thamiris, justamente por esse medo de expor os relatos fica difícil de formalizar uma denúncia para à prefeitura.
“Nós temos nesta região mulheres que são mães, avós ou que a família não sabe que ela está em situação de prostituição, e elas não querem perder o trabalho. Ela tem uma família para sustentar, um aluguel para pagar e esse foi o meio que encontrou. Essa questão de proibirem essas mulheres de ficar em volta da estação, que é de onde saem os clientes, dificulta o único meio de onde elas tiram o sustento”, completa.
Direito de ir e vir
Entrada da Estação da Luz, no Centro de SP.
Deslange Paiva/ g1
De acordo com a advogada Thais Monteiro, as mulheres estão tendo seu direito de ir e vir prejudicado.
“A prostituição não é regulamentada, mas também não é proibida. Ela não é um tipo penal, apesar de ter crimes relacionados à prática, como favorecimento da prostituição, mas são os crimes correlatos. Se formos observar, a retirada dessas mulheres de lá [da Estação da Luz] que acaba virando crime. A gente sabe que essas mulheres não têm voz para se insurgir contra uma ilegalidade do próprio poder público.”
O direito de ir e vir do indivíduo está assegurado no art. 5º, inciso XV, da Constituição Federal de 1988.
Ainda segundo a advogada, essa atitude dos agentes está mais atrelada a “questões morais” do que a uma ilegalidade.
“Aquela região está em transformação, então existe uma pressão imobiliária. Existem inúmeras razões para não quererem aquelas mulheres ali, mas de nenhuma maneira pela justificativa de que algo ilegal está sendo feito. É uma questão moral, já que não é crime que qualquer pessoa venda seu corpo em troca de dinheiro. Se tivesse crime, elas teriam que ser conduzidas para a delegacia, o que não foi feito”, completa.
Dinheiro rápido e profissão acomodada
Rua Casper Líbero, próxima a Estação da Luz.
Deslange Paiva/ g1
Na região da Luz, em média, um programa pode variar entre R$ 20 e R$ 80. Segundo a ONG Mulheres da Luz, depois da pandemia o valor reduziu ainda mais.
“Antes a gente sabia que tinha uma média de R$ 50, mas agora tem mulher fazendo por R$ 20 ou até menos, isso é uma consequência direta da pandemia. Com o espalhamento da Cracolândia, também tem mulher fazendo por R$ 15”, afirma João Silva, um dos voluntários da ONG.
O dinheiro rápido é justamente um dos motivos que impedem as mulheres em situação de prostituição de abandonar a profissão.
Maria, de 76 anos, começou a fazer programa com 20 anos, quando chegou na cidade de São Paulo. Ela conta que sempre se manteve em subempregos e entrou na prostituição para complementar a renda.
“Não vou mais atrás como antes, mas se aparecer alguém procurando, acabo fazendo sim. Estou com 76 anos, não é mais tão fácil me manter como era antes. Comecei por necessidade, para sobreviver aqui [em São Paulo] e só paro quando eu morrer”, afirma.
Aline diz que se acomodou na profissão.
“Se eu falar que gosto, vou mentir, mas não saio porque, de certo modo, me acomodei. Até a fertilização do meu filho eu fiz com o dinheiro de programa, então é um bom dinheiro, que vem rápido e que me ajuda a sobreviver. Eu não gosto, mas também não saio. Sou mãe solteira, arco com tudo sozinha. Um emprego convencional – se eu conseguir – não vai suprir minhas necessidades”, afirma.
Quando questionadas se tiveram algum momento de arrependimento na profissão, a única que respondeu foi Regina.
“Não é um dinheiro fácil, não é fácil. É um dinheiro rápido. Cheguei aqui por curiosidade, um dia vim tomar uma cerveja com um amigo e vi que tinha várias mulheres fazendo programa. Nisso, o tempo passou, eu tive um filho e estava sem dinheiro, então, por necessidade e por falta de emprego, acabei vindo para cá [região da Luz]. Lembro que, no começo, fiz um programa e fui tomar banho. Quando saí do banheiro, meu cliente tinha ido embora e deixou R$ 27 em cima da cama. Olhei aquilo e me senti horrível, suja. Só que o tempo foi passando, fui me acostumando e hoje ganho a vida assim”, afirma.
Regina é casada e conta que o marido sabe da profissão, mas o casal optou por manter o relacionamento separando a vida profissional da amorosa.
“Meus pais não sabem, mas com ele [marido] a nossa convivência continua normal. Saio de casa para trabalhar em horário comercial, como um serviço normal, volto, e a vida segue. Ele me conheceu assim, é assim que eu quero viver”, afirma.
Segundo João, a ação da GCM, de afastar as mulheres da estação, é mais uma medida de “contenção de grupos indesejáveis”.
“Elas estão aqui e o governo deveria pensar em alternativas para elas, mas nunca foi pensando. Isso mostra como são vistas. Quando eles sentem um incômodo, criam alguma ação para tentar afastar e essa região está passando por um boom imobiliário, ou seja, como querem trazer novas pessoas para cá, têm que ‘limpar’ a área antes”, afirma.
“Quando o estado não tem interesse, elas vão ficando. Agora, quando tem, eles retiram e vão espalhando [as mulheres] e não dão nenhuma alternativa. Eu não vejo a prefeitura fazendo um trabalho para essas mulheres”, completa.
Prisão em massa antes
A antropóloga Ana Braga Azevedo, que pesquisa a prostituição da região da Luz pela Universidade de São Paulo (USP), relembra que antes e durante a ditadura militar (1964 -1985), dezenas de trabalhadoras sexuais eram presas na região todos os dias.
Entre 1940 e 1953, elas foram confinadas e isoladas em uma casa no Bom Retiro por decreto do governo de São Paulo. O local ficou conhecido como Zona do Meretrício. “Com o Código Penal de 1940, criado pelo então presidente Getúlio Vargas, antes da ditadura, existiam brechas para criminalizar diversas questões no Brasil, inclusive a prostituição. As mulheres eram retiradas em massa e isoladas em uma casa”, afirma Ana Braga.
Naquela época, o Brasil vivia sob o Estado Novo, fase ditatorial da Era Vargas, que durou de 1937 a 1945. Adhemar de Barros foi nomeado por Vargas como interventor do estado de São Paulo. Foi de Barros a ideia de confinar as prostitutas como uma tentativa de deixar o Centro mais “limpo”.
O local foi desocupado apenas em 30 de dezembro de 1953, quando o então governador Lucas Nogueira Garcez anunciou uma ordem para extinção da zona.
“Mas, ainda durante as décadas de 50 e 60, existem diversos relatos de mulheres presas pela polícia do estado, de forma truculenta. Durante a ditadura, isso se intensificou, com ações policiais extremamente violentas. Os agentes encontravam brechas para criminalizar as mulheres por vadiagem. Centenas eram levadas dentro de um camburão todos os dias para a delegacia. Existia até uma negociação entre donos de bares, nos quais as mulheres ficavam, com os agentes, onde eles já deixavam o dinheiro da fiança pago, antes mesmo de a mulher ser presa”, afirma a pesquisadora.
Segundo ela, em 1979 começaram uma série de manifestações de mulheres para que a polícia fosse menos truculenta durante as prisões.
“O tempo passa e a polícia continua lá, vistoriando, com medidas que ferem seus direitos de ir e vir. Tem outras medidas do governo que também mudam a rotina dessas mulheres, como essas obras constantes, que diminuem o fluxo de pessoas. Então a região fica mais vazia, mais abandonada e, consequentemente, mais perigosa. Tem o espalhamento da Cracolândia, que eu não vejo como algo à toa. Fere-se o direito de elas estarem na rua. Eles regulam a prostituição como bem entendem”, afirma.
O g1 questionou a Prefeitura de São Paulo sobre as ações voltadas para mulheres em situação de prostituição. Em nota, a gestão informou que:
“Possui políticas públicas destinadas a todas as mulheres, em diferentes áreas de atendimento. Na rede municipal de saúde existem políticas específicas para a saúde da mulher e na rede de atendimento mantida pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) são oferecidos orientações e encaminhamentos diversos.
A SMDHC oferece atendimento nos três postos avançados localizados nas estações de Metrô da Luz e Santa Cecília e no terminal de ônibus do Sacomã. Há ainda os Centros de Referência da Mulher, um deles está localizado Rua Líbero Badaró na área central. Além disso, os cinco Centros de Cidadania da Mulher que estão sendo unificados e fortalecidos tornando-se Centros de Referência e Cidadania – Casa da Mulher.
A Casa da Mulher Brasileira, inaugurada em 2019, no Cambuci reúne no mesmo lugar diversos serviços: atendimento multidisciplinar (psicóloga e assistente social), Delegacia de Defesa da Mulher, Tribunal de Justiça de São Paulo, Defensoria Pública, Ministério Público, Guarda Civil Metropolitana e abrigo de passagem. Somente em 2023 foram realizados 125.004 atendimentos na unidade, sendo o equipamento com maior número de atendimentos da rede.
A rede de saúde na região central também oferece atendimento em 37 unidades. Além disso, todas as 471 Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e hospitais da rede municipal estão preparados para cuidado integral da saúde da mulher”.
*Foram usados nomes fictícios para preservar a identidade das entrevistadas.
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