Charlie Hebdo, 10 anos depois: a liberdade de expressão rachou ali

Há dez anos, em 7 de janeiro de 2015, ocorria o massacre da redação do Charlie Hebdo, em Paris. Começou a rachar ali um dos pilares da civilização ocidental: a liberdade de expressão.

Dois terroristas islâmicos ligados à Al Qaeda, os franceses de origem argelina Said e Cherif Koauchi, entraram na sede de jornal satírico semanal e, com armas de guerra, mataram 11 pessoas, praticamente todos os integrantes da equipe de jornalistas e chargistas. Após o massacre, eles assassinaram um policial em uma rua próxima.

No dia seguinte, outro terrorista islâmico, o franco-maliano Amedy Coulibaly, matou uma policial em Montrouge, na região parisiense, e outras quatro pessoas em um supermercado judaico, o Hyper Cacher, nos arredores da capital francesa. O antissemitismo fez a sua participação especial.

Os três jihadistas seriam mortos pela polícia em 9 de janeiro. Mas o horror teria sequência. Em 13 de novembro do mesmo 2015, Paris sofreu uma série de ataques perpetrados por 9 terroristas ligados ao Estado Islâmico.  Mais de 120 pessoas morreram fuziladas ou vitimadas por granadas em restaurantes, cafés, na entrada do Stade de France e na boate Bataclan, onde pereceram 90 vítimas. O número de feridos ultrapassou os 400. À exceção dos três suicidas, todos os demais jihadistas foram abatidos pela polícia.

Em 7 de janeiro de 2015, eu era morador intermitente de Paris, onde havia sido correspondente e me casei. Havia lançado fazia uma semana o site O Antagonista, junto com Diogo Mainardi. Estávamos almoçando com os meus sogros perto de casa, no que parecia ser mais um dia como tantos outros, quando um vendedor de jornais que é personagem do bairro adentrou o restaurante e avisou que o Charlie Hebdo havia sido atacado.

Voltei imediatamente para casa e comecei acompanhar a cobertura televisiva. Ao mesmo tempo, chegavam informações dos franceses do meu entorno. Devo ter sido o primeiro jornalista brasileiro a noticiar o atentado. Escrevi dezenas de notas curtas, telegráficas, informando os leitores em tempo real sobre o que estava acontecendo, em decupagem frenética. Ali se inaugurava o estilo do site que criamos e que viria a fazer tanto sucesso.

Quatro dias depois do massacre do Charlie Hebdo, dezenas de milhares de cidadãos se reuniram na Place de la République para marchar até a Place de la Bastille, naquele que é o percurso mais tradicional das passeatas em Paris. Cinquenta líderes mundiais estavam presentes, além do presidente François Hollande. Eu participei do cortejo que se desenrolou sob o frio azul invernal.

O que mais me chamou a atenção foi o silêncio que frequentemente se instalava naquela massa de pessoas que compõem o cadinho francês. Às vezes, cantava-se suavemente a Marselhesa, o hino do país. Esse era o sussurro de uma multidão enlutada. Esse era o grito sufocado em defesa de liberdades duramente conquistadas.

O Charlie Hebdo é um jornal que atira para todos os lados. As suas charges não conhecem limites políticos, religiosos ou éticos e podem ser de uma vulgaridade e uma impiedade chocantes. Maomé é um dos seus alvos preferenciais, daí o ódio islâmico pelo jornal. Quando ouço dizer que “liberdade deve ser acompanhada de responsabilidade”, sorrio pensando no Charlie Hebdo. Porque ninguém é mais responsável com a liberdade de expressão do que o jornal satírico com toda a sua irresponsabilidade.

Explico: o Charlie Hebdo existe, principalmente, para afirmar que a verdadeira liberdade de expressão não conhece fronteiras. Ela é passível de punições previstas nos códigos penais dos diferentes países, mas é um valor universal que não admite mordaças ou não será liberdade.

O Charlie Hebdo não morreu, permanece um bastião, declarou-se “indestrutível” na sua edição dos 10 anos do atentado, mas a expressão já não é tão livre na França, bem como no resto do Ocidente e na sua periferia. O jornal satírico tão identificado com a esquerda agora é atacado por ela, porque não se quer ferir suscetibilidades no eleitorado muçulmano e o wokismo é uma variante ideológica que não admite piadas em qualquer latitude.

Desde o atentado, por medo, os jornalões franceses evitam publicar charges e cartuns que façam referência ao Islã, no que foram acompanhados pelos seus congêneres europeus e americanos. Mesmo os desenhos que troçam de personagens políticos e do mundo econômico agora são escassos, visto que os interesses empresariais passaram a interferir, como nunca, na linha editorial de publicações cada vez mais dependentes da boa vontade estatal e de publicidade. A charge e o cartum são gêneros jornalísticos em extinção.

O 7 de novembro de 2015 paira no ar. Hoje, os jornalistas e chargistas do Charlie Hebdo obedecem a regras rígidas de segurança. Não podem dar indicações nas redes sociais de lugares que frequentam. Quando se deslocam a trabalho, informam as autoridades para que elas forneçam segurança policial. As ameaças de morte e estupro são frequentes e nenhuma delas deixa de constar em boletins de ocorrência.

Ser leitor do Charlie Hebdo ou defensor do jornal também é perigoso. Em outubro de 2020, o professor Samuel Paty foi decapitado porque, em uma aula cujo assunto era liberdade de expressão, mostrou uma charge de Maomé publicada pelo Charlie Hebdo. É triste constatar, mas os terroristas islâmicos que massacram a redação do jornal, já faz dez anos, estão vencendo.

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