Golpe militar ou de militares? (por Hubert Alquéres)

A prisão do general Braga Neto – o primeiro militar de patente máxima a ir para o cárcere em um regime democrático no Brasil – levanta uma questão que não é semântica: afinal, estivemos diante de uma tentativa de golpe de militares ou de um golpe militar?

Caso tenha sido a primeira hipótese, como indicam as evidências vindas à luz do dia, não se pode confundir a ação de um grupo de militares, parte deles da reserva, com a instituição Forças Armadas. Essas, apesar de terem sido submetidas a profundo estresse pelo então presidente Jair Bolsonaro, resistiram, a partir da cadeia de comando, aos que queriam arrastá-las para uma aventura com potencial de desaguar em um conflito civil no país.

Fazer a devida distinção se impõe até para não se cair no jogo dos que tramaram o golpe. A eles interessa a confusão entre os seus CPFs e o CNPJ das Forças Armadas, como tentativa de despertar uma cadeia de solidariedade e assim diluir suas responsabilidades pelo crime que praticaram.

Mas é, antes de tudo, uma questão de justiça. O próprio inquérito da Polícia Federal sobre as articulações golpistas, incluindo a operação “Punhal Verde e Amarelo”, aponta o motivo de seu fracasso: a falta do apoio das Forças Armadas. Em especial à resistência do então comandante do Exército, general Freire Gomes, e também o da Aeronáutica, brigadeiro Batista Júnior.

Quase na mesma linha vai a declaração de Paulo Teixeira, ministro do Desenvolvimento Agrário e deputado do Partido dos Trabalhadores. Segundo ele, a prisão de Braga Neto “é também uma homenagem aos militares que foram firmes na defesa da democracia”. Para o ministro, o general golpista “era uma laranja podre nas Forças Armadas”.

Ainda está para ser contada com mais detalhes como foi a resistência no interior das Forças Armadas e como se construiu a maioria no alto comando do Exército – principal força militar – para inviabilizar a ação golpista que corria solta durante o governo Bolsonaro.

Mas a convicção de que ela foi decisiva aparece de forma clara no documentário “A democracia resiste” da jornalista Júlia Duailibi, disponível no Globoplay.  Ao ser entrevistado, o então interventor no Distrito Federal nomeado por Lula, Ricardo Cappelli, peça chave no enfrentamento da intentona de 8 de janeiro de 2023, foi cristalino: “o golpe falhou porque não teve o apoio das Forças Armadas”. Não gratuitamente, o general Braga Neto incentivava sua turma golpista a “oferecer aos leões“ a cabeça do então comandante do Exército, general Freire Gomes, por não aderir ao golpe. Prometeu ainda “infernizar a vida“ do brigadeiro Batista Júnior e de seus familiares pela mesma razão.

Tratou-se, portanto, como defende a atual cadeia de comando, de tentativa de um golpe de militares e não de um golpe militar com o apoio das Forças Armadas, como aconteceu em 1964. Nem por isso a ação da qual Braga Neto é apontado como um dos cabeças deve ser subestimada. Os fatos foram gravíssimos. Não há em nossa história uma articulação na qual se planejava o assassinato do presidente eleito, de seu vice-presidente e de um membro da Suprema Corte.

Concretizado o plano macabro, um golpe dessa dimensão colocaria o Brasil diante de dois cenários possíveis. Se derrotado, viveríamos uma situação semelhante à da Turquia em 2016, quando a derrota dos golpistas levou a uma “limpeza” profunda nas Forças Armadas, com 300 militares conduzidos ao banco dos réus e parte deles condenada à prisão perpétua. Na hipótese de vitória, promoveria um banho de sangue imenso, talvez similar ao da Indonésia de 1965, quando foram assassinadas 500 mil pessoas que tentaram resistir ao golpe militar no país asiático.

Não é exagero dizer, como o fez o jornalista Merval Pereira, que estivemos próximos de uma “guerra civil”, que “só não aconteceu porque as Forças Armadas, especialmente o Exército, não aderiram”.  Este não foi o único fator a levar ao fracasso os planos de um golpe sangrento. Havia, claro, a situação internacional, em especial a dos Estados Unidos de Joe Biden, que se apressou em mandar o recado aos militares brasileiros sobre sua oposição a qualquer tentativa de ruptura democrática no Brasil.

Também pesou a resiliência da democracia brasileira, com a firme posição do Judiciário e do Parlamento, uma das primeiras instituições a rechaçar, publicamente, a ação golpista, por meio dos presidentes da Câmara de Deputados e do Senado. E, ao contrário de 1964, não houve amplo apoio na sociedade, nos meios de comunicação e no empresariado, à intentona bolsonarista.

Nossa democracia foi submetida a intenso estresse, mas passou no teste, nos possibilitando dar prosseguimento ao maior período de nossa história republicana de ordenamento democrático, sem intervenção militar ou golpes.  A chamada Utopia Autoritária, expressão criada pelo historiador Carlos Fico, da UFRJ, marcou a nossa história desde o início da República. Na verdade, desde o fim da Guerra do Paraguai, quando o tenente coronel Sena Madureira e o coronel Cunha Matos assumiram posições contrárias ao regime monárquico e foram presos.

A própria República foi implantada a partir de um golpe militar e a história do século 20, marcada por sucessivas intervenções na vida política nacional, com as Forças Armadas se comportando, em vários momentos da história, como partido fardado.  Seria ingenuidade acreditar que essa cultura salvacionista oriunda do positivismo de Augusto Comte desapareceu totalmente. Em certo sentido, Braga Neto é expressão da mentalidade de atribuir às Forças Armadas funções que a Constituição não lhes concede.

É reconfortante, contudo, que no momento mais delicado da nossa história pós democratização de 1985, as Forças Armadas, como instituição, se comportaram de forma altiva, observando seu papel constitucional.

Quanto ao general Braga Netto, ele não é as Forças Armadas. Além de responder por seus crimes na esfera civil, deve enfrentar também a Justiça Militar, podendo perder sua patente. Pode entrar para a história como traidor da Pátria e da instituição à qual jurou honrar. Está sendo visto assim no estamento militar. Com a agravante de ter sido desleal com a cadeia de comando a quem apunhalou pelas costas. A lealdade, valor tão caro aos militares, não se encontra na ação covarde do general golpista.

Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.