A arte ancestral de Mayara Ferrão, Mônica Ventura e Heloisa Hariadne

A arte ancestral de Mayara Ferrão, Mônica Ventura e Heloisa HariadneKalel Adolfo

Na última década, o mercado da arte tem ampliado sua atenção à produção de artistas negros. Com uma multiplicidade de linguagens e características, nomes como Rosana Paulino, Renata Felinto e Eustáquio Neves ganham destaque, criando obras que desafiam a hegemonia estética eurocentrada e promovem reflexões sobre a história e as contribuições da diáspora africana.

Por vezes, suas obras investigam a autoimagem de pessoas não brancas, bem como sua memória individual e coletiva. Tiram o homem branco ocidental do centro da criação da arte e o substituem pelo protagonismo negro.

Ainda que seja tratado como novidade, é importante lembrar que esse não é um movimento recente — o pintor Rubem Valentim e o escultor Mestre Didi, por exemplo, já criavam peças de grande relevância nos anos 1950 e 1960.

“Definir a arte contemporânea afrodiaspórica como um fenômeno novo é um sinal de racismo estrutural. Pessoas negras criam há muito tempo — o problema é que só há dez anos começamos a legitimar isso” , observa a curadora Ana Beatriz Almeida.

Ainda assim, há mudanças evidentes nesse olhar. Um dos marcos que fortaleceu essa cena foi a criação de espaços independentes e grupos voltados à promoção de artistas negros. Iniciativas como o Projeto Afro, site fundado pelo pesquisador Deri Andrade, e a HOA Galeria, de Igi Lola Ayedun, localizada em São Paulo, atuam como plataformas de visibilidade e diálogo entre arte e sociedade, ajudando a reconfigurar o circuito brasileiro.

A recém-inaugurada exposição Ancestral: Afro Américas — Estados Unidos e Brasil reforça essa discussão. Em cartaz até o dia 25 de janeiro de 2025, no Museu de Arte Brasileira da FAAP, em São Paulo, ela reúne 73 artistas do cenário internacional das duas nações que desafiaram o apagamento colonial e reformularam a ideia de Ocidente.

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“Evocamos artistas entendendo-os como manifestadores de uma nova identidade e perspectiva. Fizemos um mapeamento daqueles que recuperam a humanidade de toda uma comunidade a partir da arte”, explica Ana Beatriz. Simone Leigh, por exemplo, trabalha com argila para abordar a feminilidade negra. Já Dalton Paula cura a exclusão social por meio da restauração de personagens oprimidos ou apagados. A produção têxtil de Sonia Gomes, por sua vez, elabora novos significados para a memória e a ação do tempo.

A especialista também destaca que, para reduzir a desigualdade no meio criativo, algumas estratégias devem ser adotadas tanto por instituições privadas, quanto pelo poder público. Isso inclui a ampliação do acesso à educação de qualidade e a inserção de pessoas negras em espaços de poder e decisão.

“Entendendo que o Brasil é um país no qual houve uma política de branqueamento da população e até hoje os dados de homicídio da polícia estabelecem uma linha de cor, é importante que as instituições olhem para as estatísticas para subverter os resultados”, diz.

Essa transformação impacta a cultura em duas esferas fundamentais para romper o ciclo do racismo no nosso país: à medida que mais pessoas negras ganham destaque, a representatividade cresce, oferecendo aos jovens novas perspectivas de futuro.

Além disso, a arte, como um poderoso mecanismo de representação social, abre espaço para a disseminação de um pensamento decolonial, permitindo que mais vozes desafiem as ideologias hegemônicas. A seguir, a trajetória de três artistas contemporâneas para prestar atenção.

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Reconstruir a memória

Mayara Ferrão está na capa de novembro 2024 da Revista CLAUDIA.
Mayara Ferrão veste blusa Aluf; brinco e colar Swarovski; pulseiras resina Lool;<br />pulseiras metálicas, anéis e piercing Acervo PessoalCamila Tuon/CLAUDIA

Mayara Ferrão se apropria das diversas linguagens e tecnologias de imagem para pautar novas visões sobre os corpos negros e dissidentes. Formada em artes visuais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), a artista parte da pintura, ilustração e fotografia para discutir a história do Brasil. A vivência enquanto mulher negra soteropolitana e seu conhecimento em signos da cultura afro-brasileira são fontes de inspiração para sua pesquisa.

Aos 31 anos, ela já trabalhou em marcas de moda como diretora criativa, elaborando ilustrações. Essa foi a primeira linguagem que desenvolveu profissionalmente. Para ela, tudo começa no rabisco, no desenho e na pintura.

Mas foi com a produção do Álbum de Desesquecimentos, uma série de imagens feitas com inteligência artificial que reinventa o passado de pessoas escravizadas e indígenas, que seu nome se popularizou.

“Quando comecei esse trabalho, estava vivendo um processo de depressão que identifiquei ser fruto do nosso apagamento histórico”, explica. “Ao mesmo tempo, senti um incômodo em relação ao acervo imagético colonial — é estranho visitar arquivos antigos porque você se depara com retratos de pessoas que eram reduzidas a nada.”

Para ela, recriar esse repertório foi um processo consciente e íntimo. Isso porque a prática pode não só alertar o público sobre o que aconteceu no passado, mas também acolher pessoas que não se sentem representadas.

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As primeiras ilustrações criadas foram de mulheres negras sentadas de frente para um rio, reflexo da sensação de solidão e abandono que ela sentia naquele momento. Depois, passou a desenhar afetos entre casais e famílias.

“Tentei borrar um pouco o imaginário que se desdobra a partir desses registros. Eu literalmente construo com as minhas mãos o presente que precisa existir e que quero estar inserida. Acredito que, a partir disso, contemplo muitas pessoas que se identificam ou sofrem com as mesmas questões”, comenta.

Obra de Mayara Ferrão - LGBTQI+ non hegemonic love representation.
LGBTQI+ non hegemonic love<br />representation.Fernanda Corsiniredi/Reprodução
Mayara Ferrão - Ensaio fotográfico para a edição de novembro 2024 da Revista CLAUDIA.
Camisa, calça e top Misci; brincos Acervo Stylist; anéis Acervo Pessoal MayaraCamila Tuon/CLAUDIA

A contribuição de Mayara é, também, de reverenciar o lugar de esperança dentro das narrativas negras. “Que as nossas pautas não fiquem sempre no espaço do sofrimento. Somos força e resistência, mas queremos sonhar também.”

Traduzindo mistérios

Mônica Ventura estampa a capa de novembro/2024 da Revista CLAUDIA.
Mônica Ventura veste vestido Misci; brincos e bracelete Carlos PennaCamila Tuon/CLAUDIA

Há quem diga que é difícil decifrar obras de arte contemporânea, mas é quase impossível se deparar com os trabalhos de Mônica Ventura e não se sentir extasiado. A artista paulistana de 39 anos examina a história afro-brasileira a partir da arquitetura, dos rituais, da cultura Iorubá e das relações psicossociais da mulher afrodescendente.

“Eu sou a Mônica, artista, mulher e negra. Quando levo meus enredos ao circuito da arte, é como se eu fizesse um trabalho de ruptura. Acesso lugares que anteriormente eram interditados a esses tipos de corpos”, explica.

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Sua entrada em ambientes institucionais começou nos anos 2000, quando expôs, pela primeira vez, uma instalação no Centro Cultural São Paulo. Mas sua carreira começou bem antes, quando cursou design na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP).

As esculturas são realizadas a partir do uso de matérias-primas naturais, como palha, madeira e cascas de árvore, refletindo a importância da sustentabilidade em seu processo criativo. Vejo a potência construtiva e energética dos materiais vindos da natureza. Entendo que esses elementos estão carregados de história e isso me interessa muito.”

As pinturas, por sua vez, são marcadas por cores intensas que misturam tons quentes e terrosos, com traços orgânicos e fluidos que remetem a paisagens oníricas e simbolismos místicos.

Uma de suas produções mais importantes é A noite suspensa ou o que posso aprender com o silêncio, apresentada em 2023, no Instituto Inhotim. O título, inclusive, surgiu durante o puerpério, enquanto passava longas madrugadas sem dormir. A obra é composta por uma instalação central que reflete a dualidade da existência e conta a história de mitos fundadores de povos ancestrais, que ressaltam como a vida é gerada a partir da natureza.

A noite suspensa ou o que posso aprender com o silêncio, 2023
A noite suspensa ou o que posso aprender com o silêncio, 2023Icaro Moreno/Reprodução

Além dela, quadros nas paredes feitos de terra trazem símbolos que propõem a noção de movimento, energia e fluidez em diversas culturas. “As escolhas que tenho feito dentro da minha prática artística vão para um caminho decolonial. É uma forma de apresentar diferentes jeitos de criação que não são os canônicos, com o objetivo de romper a hegemonia branca eurocentrada”, reflete.

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Com sua carreira consolidada, Mônica expande os horizontes da arte brasileira não só quando traz luz a diferentes estéticas, mas também quando seu espectador entende as noções políticas, sociais e históricas de suas obras.

Ensaio fotográfico de Mônica Ventura para a edição novembro/2024 da Revista CLAUDIA.
Vestido Aluf; brinco Lool e anéis Acervo PessoalCamila Tuon/CLAUDIA

Caos controlado

Heloisa Hariadne estampa a capa de novembro/2024 da Revista CLAUDIA.
Heloisa Hariadne veste camisa e bermuda Misci; top Haight; brinco Carlos Penna; cinto Espaço ND; meia Suppy e sapato SchultzCamila Tuon/CLAUDIA

Com 26 anos, Heloisa Hariadne já trilhou um caminho notável no mundo da arte. A jovem paulista iniciou sua jornada na pintura ainda na adolescência, após se apaixonar pelo universo das cores durante um curso técnico de design.

O ofício, no entanto, foi sendo lapidado de acordo com a convivência com outros artistas e uma constante pesquisa sobre a história da arte. Para ela, seu trabalho está longe de consolidado: é um processo que segue em constante mudança. “No começo, minhas pinturas se baseavam na experimentação e na técnica para entender quais materiais funcionavam. Hoje, quando começo uma tela, já sei exatamente o que vou fazer”, diz.

Ao tentar responder à pergunta “quem somos nós por dentro?”, ela explora caminhos antes invisibilizados, gerando diálogos sobre a complexidade do ser humano.

O resultado é um conjunto de texturas marcantes, formas geométricas e um simbolismo que aborda questões de resistência e pertencimento. A ideia é que cada obra conte uma história diferente e desperte emoções nunca sentidas antes. Essa força narrativa é resultado de uma estratégia de composição bem pensada: “Me importo com o que a pintura precisa. Se eu quisesse colocar tudo o que gostaria, viraria um caos sem controle”, brinca.

Não é raro encontrar em suas telas formas que remetem a alimentos, reflexo do seu estilo de vida vegano, que para ela é uma extensão do cuidado com o corpo e com o planeta. “O que você consome afeta seu futuro e o de quem está ao seu redor”, afirma.

Ensaio fotográfico de Heloisa Hariadne para a revista CLAUDIA.
Saia e jaqueta Neriage e brincos Carlos PennaCamila Tuon/CLAUDIA

Se o senso estético de Heloisa foi encontrado na formação em Artes Visuais, sua espiritualidade e personalidade têm raízes mais profundas, herdados da avó, uma mulher forte que, “se for preciso, constrói uma casa inteirinha do zero”, ela faz questão de ressaltar.

“Ver uma pessoa fazendo tudo o que está ao seu alcance para realizar sonhos e desejos me deixou segura para ser assim também”, revela. “Essa relação familiar me tornou independente e me ajudou a definir a percepção de quem sou.”

Obra: A força que é me alimentar de você enquanto estou comigo, 2024
Obra: A força que é me alimentar de você enquanto estou comigo, 2024Filipe Berndt/Reprodução

De ascendência indígena, ela acredita que a ancestralidade a atravessa o tempo todo, seja ao frequentar espaços de aquilombamentos ou criar cada desenho. “É uma sensação de não estar sozinha, nunca. Acho que vivo conectada com o passado e com o futuro.”

Créditos

TEXTO Beatriz lourenço FOTO Camila Tuon STYLING Gabiru BELEZA Carlaxane DIREÇÃO DE ARTE kareen Sayuri

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