Springfield: a cidade vítima de uma fake news de Donald Trump contra imigrantes haitianos

Em 3 anos, empregos atraíram 20 mil haitianos para a cidade abandonada Springfield. Mas em agosto de 2023, esses imigrantes se tornaram alvo de acusações após serem vítimas de um boato que foi parar em rede nacional pela boca de Trump. A cidade vítima de uma fake news de Donald Trump contra imigrantes haitianos
Você já foi vítima de uma fofoca que podem criar uma grande confusão na sua vida? Springfield, Ohio (Estados Unidos) foi palco de um boato tão grande que hoje pode ser chamada de a capital mundial da fofoca.
A Flórida era o estado de escolha da maioria dos haitianos. Mas, há cerca de três anos, essa situação começou a mudar. Springfield era uma cidade próspera nos anos 60, mas a cidade começou a cidade ficou abandonada com a mudança de fábricas para outros países. Em julho de 2021, os EUA declararam que imigrantes haitianos que conseguissem chegar na região poderiam ficar, em asilo temporário.
Depois do terremoto no Haiti, o país se afundou numa crise política. O presidente foi assassinado e as gangues tomaram conta do porto e do aeroporto. Até ajuda humanitária tem dificuldade de chegar para dar pelo menos arroz e feijão para as crianças.
Por causa disso, muitos haitianos começaram a fugir para os Estados Unidos, como a família da Guerna, que foi para Miami. Em 2021, Gerna foi para Springfield, onde começou a trabalhar cuidado da burocracia de visto para os haitianos.
“Muitos deles nem conheciam um computador. Eu vi os haitianos vindo para cá porque as casas eram muito mais baratas do que em outros lugares e eles conseguiram trabalho”, conta Gerna.
As fábricas de processamento de alimento e de peças automotivas gostaram da nova oferta de mão de obra mais barata e de gente comprometida, que chega no horário, não falta e não reclama. Em 3 anos, a oferta de empregos atraiu 20 mil haitianos para a cidade que até então tinha 50 mil habitantes.
Hoje Gerna também trabalha como contadora fazendo imposto de renda dos imigrantes haitianos. Ela diz que em média eles ganham de US$ 4 a 5 mil por mês e conseguiram aos poucos mudar de vida. France, por exemplo, acabou de comprar sua primeira casa.
“Quando os imigrantes chegaram aqui, percebemos enormes mudanças. As casas estavam abandonadas e as ruas também. Então, os haitianos deram muita ajuda.”, conta France.
Os imigrantes haitianos compraram carros e começaram a dirigir. As crianças começaram a frequentar as escolas e a cidade silenciosamente assistia a essa mudança.
Mas em agosto de 2023, num cruzamento, uma van atravessou o sinal e avançou contra um ônibus escolar. Uma criança de 11 anos morreu e o motorista era haitiano.
A partir daí, a cidade entrou em erupção. Comentários que ficavam só dentro de casa tomaram as reuniões que a prefeitura promove toda semana para ouvir a população.
Surgiram acusações de racismo contra haitianos e um homem que se identificou como influenciador nas redes sociais disse: “Eles estão no parque pegando patos pelo pescoço e cortando a cabeça e comendo ali mesmo na estrada”.
Neste momento, a população escreveu uma carta para o senador que representa o estado, que era ninguém menos que JD Vance, que hoje é o candidato a vice de Donald Trump. Quando ele leu a carta, fez um discurso que dizia:
“Eu os convido hoje a ir a Springfield, Ohio, e ver como a população está se sentindo por lá. O preço da moradia está nas alturas. E você não precisa reconhecer que esses 20 mil haitianos são más pessoas para reconhecer que há um problema”.
A partir daí, o clima só esquentava. Uma mulher postou nas redes sociais que a amiga da filha da vizinha perdeu o gato dela e viu ele pendurado no galho da casa de um haitiano.
Logo depois, um vídeo circulou pela internet. Um policial aborda uma mulher comendo um gato. Ela não era nem haitiana e o vídeo não foi nem sequer gravado em Springfield, mas colocou mais lenha na fogueira e a fofoca foi parar na prefeitura.
Depois, o filho de Donald Trump postou nas redes sociais que imigrantes comiam os gansos de Springfield e o empresário Elon Musk publicou um meme nas redes sociais: “Vote na Kamala se você quer que isso aconteça na sua vizinhança”.
No Arizona, o Partido Republicano colocou um outdoor dizendo: “Coma menos gatinhos, vote Republicano!”
Mas a história só se tornou mesmo famosa quando no dia do debate, Donald Trump levou o boato à rede nacional e disse: “Eles estão comendo os cachorros! Eles estão comendo os gatos!”
O mediador já sabia que esta água estava fervendo e desmentiu na hora, dizendo que nunca houve provas de que isso aconteceu.
O prefeito de Springfield, do mesmo partido de Donald Trump, disse que isso era mentira, que não havia evidências. Mas o estrago estava feito. Virou o assunto mais comentado do debate e os memes se espalharam pela internet. A fofoca se espalhou como pólvora e a desinformação deixou a população ainda um pouco mais distante da realidade.
O próprio Jd VANCE declarou que talvez os memes não sejam verdade, mas que eles serviram ao propósito de levar atenção para Springfield, Ohio. Muitos haitianos se mudaram de Springfield.
Na semana seguinte ao debate, a cidade recebeu 33 ameaças anônimas de bombas em hospitais, escolas, na prefeitura.
Mas a Rose sentiu também o impacto contrário: “Queremos apoiar a comunidade haitiana. Nós sabemos que é muita gente chegando aqui para uma cidade pequena, mas sabemos que eles têm muito a oferecer em termos culturais e de trabalho responsável”.
No restaurante haitiano, uma parte dos moradores de Springfield quer deixar algo bem claro:
“A maior parte das pessoas que reclama dos haitianos não consegue passar num teste de drogas para conseguir um trabalho”, diz uma mulher.
Guerna abriu também o primeiro mercadinho de produtos haitianos que tem muitos clientes.
“Nosso país vive numa situação difícil, mas nós viemos aqui para trabalhar e não para fazer nada ilegal. Queremos essa oportunidade para ajudar nossas famílias que estão sofrendo coisas de todo tipo”, diz um haitiano.
“No nosso país nunca se comeu cachorro. É papo de político”, acrescenta outro imigrante.
Até hoje não houve nenhuma prova de que alguém estivesse comendo gatos ou cachorros.
Mas o que ficou evidente é que na região há duas ideias bem diferentes do que é o sonho americano. De um lado, a esperança de haitianos. Do outro, o desespero de um grupo de americanos.
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