Em um mês, abuso virtual virou marcas no corpo de adolescente

Menores de idade são vítimas de estupro e assédio pela internetReprodução

Aos 16 anos, Ana (nome fictício) sofreu abuso sexual virtual, se mutilou e ficou com marcas profundas pelo corpo. Tudo começou a partir de uma conversa on-line, até então inofensiva, com um rapaz desconhecido.

Depois de um tempo, ela se viu em um grupo do Discord, um aplicativo popular entre adolescentes, que permite que os usuários conversem por meio de mensagens de texto, voz e vídeo.

 “Ele me levou pra esse grupo e aí foi mais ou menos um mês de muito medo. A pessoa do outro lado me ameaçava e dava ordens para eu me cortar. Me obrigava a fazer cortes profundos pelo corpo e dizia que sabia onde encontrar minha família, dizia até o CPF dos meus pais e que ia atrás deles. Se não obedecesse, ele viria atrás da gente. Morria de medo, não contava para ninguém e fazia o que ele mandava”, descreve a vítima, ao Portal iG.

Ana conta que conseguiu sair dessa situação quando criou coragem e contou para uma amiga, que a orientou a procurar ajuda. Logo em seguida, ela foi convidada a participar de uma entrevista na TV para denunciar os abusos, junto com outras meninas.

“Mesmo não sendo identificadas, nós acabamos chamando atenção de ONGs, institutos, entre eles o Instituto Pró-Vítima, que me procurou e ofereceu ajuda. Passei por psicólogos e tive que contar minha história na Delegacia da Mulher. Foi só aí que contei o que tinha acontecido para minha mãe. Eu tinha marcas profundas pelo corpo, mas escondia dos meus pais”, relata.

Depois disso, ela diz que se livrou dos abusadores da plataforma, mas passou um bom tempo com muito medo, se sentindo ameaçada.

“Na época dos abusos, eu cursava o ensino médio durante o dia e a noite fazia curso técnico. Meu medo das ameaças era tanto que eu tranquei meu curso para não sair a noite. Vivia apavorada. Depois da denúncia, esse medo ainda me paralisou por algum tempo, mas hoje, dois anos depois, tento seguir a vida”, diz.

Eu tento esquecer, mas é difícil. As marcas no meu corpo não me deixam esquecer”, finaliza Ana. Após as denúncias dela e de outras vítimas, a polícia investigou o caso e prendeu cinco rapazes suspeitos de envolvimento nos casos de abuso sexual virtual por meio da plataforma Discord.

Luta pelo fim da violência

Ana é uma em meio a tantas mulheres vítimas de violência, que, traumatizadas, tentam esquecer o que sofreram.

No Dia Internacional da Mulher, 8 de março, que a data que marca a luta das mulheres por igualdade represente também um chamado para a implementação de políticas públicas que possam efetivamente assegurar os direitos de meninas e mulheres que sofrem qualquer tipo de violência.

É o que defende a Promotora de Justiça (MP-SP) Celeste Leite dos Santos, que é presidente do Instituto Brasileiro de Atenção Integral à Vítima (Pró-Vítima), a que se referiu Ana, uma associação não-governamental, sem fins lucrativos, cujo objetivo de desenvolver e divulgar os direitos das vítimas.

a Promotora de Justiça (MP-SP), Celeste Leite dos Santos, presidente do Instituto Pró-VítimaReprodução

Em entrevista ao Portal iG, ela relata seu trabalho pela causa no Ministério Público, com o projeto Avarc (Acolhimento de vítimas, Análises e Resolução de Conflitos). Foi com base nessa iniciativa, que, em 2022, o grupo atuante no projeto criou o Instituto Pró-Vítima e elaborou o Estatuto da Vítima.

O PL 3890/2020, de autoria do deputado federal Rui Falcão (PT), que cria o Estatuto da Vítima, foi aprovado em dezembro de 2024 na Câmara dos Deputados e agora aguarda apreciação no Senado.

“Hoje, o que falta é a humanização da vítima. Ela vira número, porque a sua história, seu trauma e as necessidades que ela tem para superá-lo não são considerados pelo sistema de Justiça. O que promove, muitas vezes, uma revitimização”, ressalta a Promotora Pública.

Para ela, o problema é que o Estado foca apenas na questão da punição e em evitar a reincidência.

“Mas não existem políticas públicas voltadas à prevenção. É preciso trabalhar de forma concreta com coletivos vulneráveis da nossa sociedade”, aponta.

Como exemplo, Celeste menciona o aumento do número de estupro de vulnerável no estado de São Paulo, que cresceu 12,33% nos últimos três anos. Enquanto em 2022 houve 9.943 registros, em 2024 foram 11.169 as ocorrências.

“Não são feitas capacitações nas escolas para que os professores possam identificar mudanças de comportamento. Não foi criada uma rede de proteção da vítima que, inclusive, incentive a denúncia e dê suporte para as pessoas que podem ajudar essa vítima. Essas políticas públicas estão previstas no Estatuto da Vítima”, ressalta.

Ainda segundo a Promotora de Justiça, a expectativa é que a proposta de criação do Estatuto da Vítima seja discutida no Senado neste mês de março, mês da mulher.

“A mulher seria a maior beneficiada, por ser vítima da maior parte dos crimes; na infância, de estupro; quando ela casa, da violência doméstica. Seria uma ação afirmativa importante”, destacou.

Dados alarmantes

Dados da SSP de São Paulo mostram que o número de estupros em janeiro deste ano foi de 1.286Reprodução

Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado de São Paulo, o número de estupros em janeiro deste ano foi de 1.286: 7,5% superior ao registrado no mesmo mês de 2024 (1.196). Deste total, 979 casos foram estupros de vulneráveis.

“Estamos falando de mais de 30 crianças, entre meninos e meninas, que são estupradas diariamente no estado de São Paulo”, aponta Celeste.

No estupro de vulnerável, a maioria das vítimas é de crianças e adolescentes, de 2 a 13 anos, predominantemente do sexo feminino. Já nos casos de estupro, as vítimas também são majoritariamente mulheres, com idades que variam entre 16 e 30 anos.

Pena

O estupro de vulnerável é um crime previsto no artigo 217-A do Código Penal, e tipifica qualquer pessoa que mantenha conjunção carnal ou pratique outro ato libidinoso com menor de 14 anos. A pena prevista para este crime é de 8 a 15 anos de reclusão.

 

 

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