Entenda PL usado por Nunes para acusar Boulos de defender traficantes

São Paulo — “Soltura, traficante, Psol” são as palavras-chaves usadas em uma postagem do atual prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), para associar o deputado federal Guilherme Boulos (PSol) à soltura de traficantes de drogas. Segundo diz a propaganda do prefeito e por vezes, o próprio candidato à reeleição, Boulos é do partido que “propôs um projeto de lei que quer soltar 40 mil traficantes na rua”. 

Para isso, Nunes usa como referência o PL 2622/24 – projeto de lei de e autoria de oito deputados federais – Sâmia Bomfim (PSol), Glauber Braga (PSol), Fernanda Melchionna (PSol), Ivan Valente (PSol), Tarcísio Motta (PSol), Chico Alencar (PSol), Célia Xakriabá (PSol), e Túlio Gadêlha (Rede) – que se baseia no novo entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a lei de drogas para pedir a anistia de pessoas condenadas pelo consumo individual de substâncias ilícitas.

O Metrópoles conversou com dois especialistas que discordaram da posição defendida pelo atual prefeito de São Paulo e explicam por que o Projeto de Lei não trata da liberação de traficantes. 

O que propõe o PL 2622/24

O professor titular de Processo Penal da Faculdade de Direito da USP, Gustavo Badaró, explica que o Projeto de Lei faz parte de uma das repercussões do novo Recurso Extraordinário 635659, julgado em julho deste ano pelo STF.

“O Supremo disse que a conduta de uso de drogas para consumo próprio não caracteriza crime, mas sim uma infração administrativa. Ele não disse que é liberado, mas que não é mais crime e é esse aspecto que motivou a elaboração desse projeto. A ideia do PL, que me parece teoricamente correta, é que, se isto não é mais crime, então nós vamos conceder uma anistia para todas as pessoas que foram processadas ou condenadas como usuário de drogas”, explica. 

A ementa do PL diz que ele “Dispõe sobre a concessão de anistia aos acusados e condenados pelo crime definido no artigo 28, da Lei nº 11.343”, ou seja, o artigo da lei de drogas que fala sobre o uso de drogas para o consumo próprio e não para o tráfico, que, como explica Badaró, é avaliado segundo o artigo 33. 

“O projeto de lei diz que tem que ser as pessoas que estão na situação do artigo 28 da lei de drogas, que é o usuário. Traficante é o artigo 33 (…). Ele não prevê a Anistia e, consequentemente, a colocação em liberdade que nenhum traficante. Ele prevê somente a anistia de usuários de drogas que já estejam processadas por uso de drogas”, completa. 

A ementa do projeto ainda estabelece que essa anistia seria concedida somente para as pessoas julgadas pelo artigo 28, apreendidas com até 40 gramas de Cannabis, ou 6 plantas-fêmeas, para uso próprio. Na prática, Badaró defende que isso significa não é todo usuário de substâncias ilícitas que seria anistiado, mas somente aqueles classificados como usuários de maconha, nas situações descritas pelo projeto. 

“Dispõe sobre a concessão de anistia aos acusados e condenados pelo crime definido no artigo 28, da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, por adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trouxer consigo até 40g (quarenta gramas) de Cannabis, ou 6 (seis) plantas-fêmeas, para uso próprio”, íntegra da ementa do PL 2622/2024

Outra interpretação 

Por outro lado, na visão da professora de direito penal da FGV de São Paulo, Luisa Ferreira, essa descrição de usuário feita pelo PL é uma forma de ampliar o entendimento sobre quem é o usuário e quem é traficante. 

Ela explica que o Recurso Extraordinário do Supremo faz a mesma delimitação quantitativa do Projeto, mas deixa a brecha para essa classificação quando coloca que “caberá ao Delegado de Polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal”. 

“Ou seja, em princípio o delegado tem que entender que ela é uma usuária e não uma traficante, mas caso os como esses ainda vão poder continuar sendo enquadradas como tráfico mesmo que a quantidade seja inferior a 40 gramas porque na decisão do recurso extraordinário o STF abriu uma brecha, ele disse que essa presunção pode ser relativizado se tiver elementos indicativos do instituto de venda, essa pessoa pode ser considerada traficante. É como se fosse uma lei com uma brecha”, defende a professora de direito penal da FGV de São Paulo. 

Na visão de Ferreira, essa brecha faz com que a diferenciação descrita pelo PL tenha um critério mais objetivo que o do Supremo: “O PL vem ampliar o entendimento do STF, porque o PL não trás a relativização que fez o STF. Ele vai dizer que todo mundo que foi acusado ou condenado com menos de 40 gramas [ou 6 plantas-fêmeas] vai ser anistiado. Então a pessoa pode estar presa ou ela pode estar acusada, ele automaticamente extingue a punibilidade dessa pessoa, ou seja, ela não vai ter que provar que ela não estava em nenhuma situação de traficante”. 

A ressalva de Júlia, contudo, não significa, que as pessoas contempladas pelo PL sejam traficantes. De acordo com ela, a diferença é que elas não vão precisar provar que não são, caso estejam dentro do limite previsto. 

O que propõe o Supremo

Em relação ao Recurso Extraordinário do STF, Júlia Ferreira e Gustavo Badaró explicam que ele trata de uma decisão que muda o entendimento sobre a lei de drogas no Brasil, que passa a ter alguns de seus aspectos considerados inconstitucionais. 

A partir do RE, passa a valer uma “presunção de usuário” para os casos dentro do limite de 40 gramas e 4 pés de planta, o que significa que sempre que alguém estiver portando menos que essa  quantidade, essa pessoa será presumida usuária e não vai, como era antes do entendimento do STF, ser presumida como traficante. 

Essa mudança tem uma força semelhante a de uma lei até que o Congresso Nacional decida legislar sobre o assunto. O que, na prática, faz com que seja possível que pessoas recorram a condenações anteriores mesmo que o PL 2622/2024 não seja aprovado. 

Para Gustavo Badaró, sem o PL, pessoas processadas pelo artigo 28 já poderiam ir à justiça pedir para ter sua sentença revertida em medida administrativa, como prevê o novo RE para os usuários de drogas: “Se eu tivesse um cliente que foi processado ou denunciado ou está cumprindo pena sobre artigo 28 porque tinha até 40 gramas de cannabis, eu ia pedir para que fosse extinto esse processo para que a decisão do Supremo fosse aplicada”. 

Assim, para ele, o PL é uma forma de aplicação ampliada de uma decisão que já existe e a anistia, nesse caso, faz sentido, porque ela prevê a extinção total de um processo em um caso que deixou de ser considerado crime. 

A visão de Júlia Ferreira é um pouco mais conservadora. Ela concorda que, mesmo sem a aprovação do PL, é possível um pedido para recorrer a uma sentença com base na mudança feita pelo entendimento do recurso extraordinário. A diferença, contudo, é que a brecha deixada pelo entendimento do STF faz com seja se mais difícil provar que uma pessoa condenada com menos de 40 gramas no passado não é um traficante. 

“No direito penal a gente tem um entendimento que a lei nunca retroage salvo para beneficiar o réu. Então é possível que alguém que tenha sido condenado antes do entendimento do STF com menos de 40 gramas e que não tenha indicativo de mercancia peça para que seu caso seja revisitado. Mas como entendimento do STF permite uma relativização, a pessoa que foi condenada por tráfico lá atrás vai ter que contrapor qualquer prova de mercância que possa ter sido usada lá trás, e isso é mais difícil”, diz Ferreira. 

Adicionar aos favoritos o Link permanente.