Mergulho à fantasia: cariocas resgatam tradição do século passado para encerrar festejos de Carnaval; FOTOS


O g1 acompanhou o Glorioso Mergulh, que fez a Prainha da Glória de avenida, ao som de marchinhas tradicionais e com um excêntrico concurso de fantasias. O projeto retoma uma tradição popular na Cidade Maravilhosa entre os anos de 1910 e 1960. Foliã fantasiada de Moranguinho mergulha nas águas da Prainha da Glória após desfilar para concurso do Glorioso Mergulho
@caduandradee
“Este ano não vai ser igual àquele que passou”🎶 – canta um dos versos da divertida marchinha de carnaval ‘Até Quarta-feira’. E, de fato, o carnaval de rua de 2024 não se encerrou os festejos do Rei Momo como últimos anos. Mas sim como se fazia há décadas atrás.
Inspirado em concursos que ocorriam no carnaval do Rio até os anos 60, o Glorioso Mergulho à Fantasia, que ocorreu no domingo (18), pós-carnaval, se coloca como mais do que uma festa de carnaval, mas um projeto que pensa memória, território e direito à cidade – e tudo isso trajado de muita criatividade. Veja a galeria de fotos abaixo do antes e depois.
“No meu doutorado, comecei a pensar territórios artistica e politicamente. Ao descobrir essa tradição do mergulho à fantasia, fiquei com muita vontade de realizar, mas não sabia como. Até que comentei a ideia com amigos, e desde dezembro de 2023 nos reuníamos uma vez por semana para organizar. Chegamos à ideia de margear a orla do Aterro do Flamengo e da Prainha da Glória com músicos e foliões, fazendo um jogral, uma espécie de aula pública misturada com brincadeira de carnaval. O importante é desbravarmos a cidade e questionarmos a morte de tradições tão encantadoras”, conta o folião e pesquisador Alex Teixeira, um os organizadores do evento.
Mergulho à fantasia na Glória
Os banhos de mar à fantasia fizeram muito sucesso no Rio dos anos 1910 até os anos 1960 nas praias de Ramos, Ilha do Governador, Paquetá, Copacabana, Russel — que ficava na Glória — e outras. Também existiram edições dos banhos a fantasia em clubes esportivos e náuticos.
Cardume amigo da natureza 🐟
Tendo a Prainha da Glória como avenida, o projeto organizado por Aïcha Barat, Alex Teixeira, Bruno Eppinghaus, David Coelho, Diana Daou, Marcos Quental, Marina Alice Nery, e Mateus Nagem, teve cortejo do bloco Jujubas da Guanabara, que embalou o público com marchinhas tradicionais dos carnavais do Rio. Mas a iniciativa do grupo de foliões-produtores não se encerrava no resgate da tradição, um dos estandartes do Glorioso Mergulho é a sustentabilidade.
Antigamente, isso não era uma preocupação, como elucida o pesquisador e coautor do livro ‘As águas encantadas da Baía de Guanabara’, Diogo Cunha.
“Os foliões dos mergulhos à fantasia do século XX tinham a areia e o mar como apoteose, e desfilavam com roupas de banho e fantasias de papel crepom. No final do desfile, todos mergulhavam na praia e a água ficava toda colorida e poluída. Achamos documentos de alguns dos concursos onde não de podia usar roupa de pano e era obrigatório ser crepom”.
Desde o início do projeto de despoluição da Baía de Guanabara pela concessonária Águas do Rio, em 2022, foliões moradores da região contaram que, por vezes, a Prainha da Glória está não só balneável, como conta com ilustres visitas de sardinhas e suntosas tartarugas verdes. No entanto, há dias de muito plástico, cheiro fétido e cor escura nas águas.
“Esse trecho de praia aqui da Glória ficou poluído por décadas e ainda tem dias que o lixo do fundo da baía vem com força. Não queremos perder essa praia, então organizamos um evento que aproveitasse esse lugar público e zelasse por ele ao mesmo tempo”, defende Alex Teixeira.
De acordo com o último boletim de balneabilidade das praias do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), que avaliou a qualidade da água na Praia do Flamengo nos pontos da foz do Rio Carioca e em frente à Rua Corrêa Dutra, no dia 15 de fevereiro, a região estava imprópria para o banho.
🧴Além de avisarem aos foliões para guardarem o próprio lixo e procurarem lixeiras ao longo do trajeto, os próprios organizadores passaram com sacolas recolhendo o que estivesse pelo chão. Antes e depois da festa, dois mutirões de limpeza foram realizados.
As recomendações do organizadores foram, entre outras:
Trazer o próprio copo
Evitar consumir bebidas em garrafa de vidro
Reutilizar trajes de outros carnavais para compor novas fantasias
Usar protetores solares biodegradáveis, que não afetam a vida marinha
E, como nem todo plástico é visível a olho nu: brilhar é para ser só com glitter biodegradável
Foliã Aline Vargas exibe chapéu de tubarão confeccionado com máscara de covid e sobras de outras fantasias
Yasmim Restum/g1
A foliã Aline Vargas, professora de teatro e doutoranda na Unirio, levou a sério a recomendação.
“Eu fiz essas cabeças para uma peça de teatro, e agora no carnaval vesti minha família toda de tubarão. base é uma máscara de covid, e o tampo de cima é uma sobra de cenário, tem um tutu de detalhe de figurino também. Vi que era um bloco sustentável, e pensei, porque não fazer? Simbora tubaroar!”
Aterramentos e poluição como causas do fim
No século XX, o mergulho à fantasia se encerrou por volta dos anos 60. E para além de organizar o evento, Alex Teixeira também se enveredou por pesquisas históricas para entender os motivos do fim da tradição.
Construção do Aterro do Flamengo, 1959
Arquivo Nacional
“Foi a partir de 1960 que a tradição foi arrefecendo por conta da repressão da ditadura militar, que passou a perseguir e proibir os desfiles de diversos blocos e agremiações carnavalescas. As reformas urbanas dos anos 1960 e 1970 também contribuíram para o apagamento da tradição, uma vez que muitas praias foram aterradas”, explica.
O escritor e pesquisador Diogo Cunha relembra que o banho de mar à fantasia estava no calendário oficial da cidade do Rio de Janeiro até 1978 e ocorria antes, durante e depois do carnaval. Observando os processos de aterramento tanto do Aterro do Flamengo como da Avenida Brasil, Diogo levanta questionamentos acerca do papel político dessas intervenções urbanísticas.
“O mar não era um local tão valorizado assim na década de 20, tanto que se tinha diversas casas e clubes de costas para o mar, inclusive em Copacabana. Hoje a gente acha que só a Zona Sul celebra o mar, mas os clubes náuticos de Ramos, por exemplo, eram muito frequentados, e o próprio Getúlio Vargas pensou em abrir um cassino por lá. Com o deslocamento das indústrias para o subúrbio carioca, vários aterramentos foram feitos, como no Caju, em São Cristóvão. E basta olhar como o poder público fez o aterramento da Avenida Brasil, ao longo dos anos 40, e o Aterro do Flamengo, nos anos 60, para ver a diferença de projeto político. Um é só concreto e muito calor, enquanto outro é repleto de áreas de lazer e paisagismo”.
Um militar de folga, que preferiu não se identificar, disse ao g1 que, apesar de não gostar de carnaval, estava impressionado com o cortejo do Glorioso Mergulho.
“Não gosto de carnaval, acho uma bagunça. A gente que é militar, se estiver atuando no carnaval fica em estado de constante tensão porque é uma festa do povo que ninguém segura. Aqui eu estou como civil. Vim sozinho, não falei para ninguém, mas estou curtindo sim. Está tudo em paz, lembrando de carnavais da minha época. Mas nem todo bloco é bom assim”, opinou.
Avenida Brasil em 1968
Biblioteca do IBGE
Carioca Iate Clube em Ramos
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
A foliã Renata de Andrade, técnica de enfermagem e professora aposentada, está na torcida para que a tradição continue nos próximos anos.
“Sou de 1958, não vivi essa tradição, mas lembro de ouvir falar muito dela na minha infância. E estou achando magnífico, um privilégio mesmo, tanta gente jovem sabendo e cantando marchinhas da minha época, várias crianças com as mães e pais. Espero que a ideia não morra novamente nos próximos anos”, disse, esperançosa, entre os confetes de papel que lançava no ar, divertindo quem passava.
Quem venceu?
A primeira edição do Glorioso Mergulho partiu do Clube de Regatas Boqueirão do Passeio (na antiga Praia das Virtudes, entre o Aeroporto Santos Dumont e o Museu de Arte Moderna), e seguiu pelas extintas praias de Santa Luzia, Areias de Espanha e Russel, até chegar a atual Prainha da Glória.
O concurso de fantasias contou com 20 participantes. E a comissão julgadora, composta por Natasha Pasquini, Ligia Veiga, Silvio Rodrigues, Preta QueenB Rull e Tayson Pio avaliou quesitos como evolução, originalidade, execução, e carisma. No pódio:
1º – Isadora Ribeiro saindo de dentro da água imitando a abertura do Fantástico, e dizendo que aguardava esse momento todos os domingos.
2º – Bruna Kury vestida de ‘O Grito’, obra de Edvard Münch.
3º – A foliã vestida de moranguinho – personagem de um desenho animado dos anos 80
Atriz Bruna Kury participa do concurso do Glorioso Mergulho fantasiada de ‘O Grito’, quadro do norueguês Edvard Munch, de 1893.
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