A linguagem humana: a dialética do subjetivo e o objetivo

Que é o mundo humano senão a objetivação de inusitadas subjetividades

ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

            Xenófanes queixava-se, aproximadamente 450 anos a.C., do caráter antropológico da religião: “Tudo aos deuses atribuíram Homero e Hesíodo, tudo o que entre os homens merece repulsa e censura: roubo, adultério e fraude mútua”. Quando o ser humano procura entender tudo que o rodeia, seja da maneira que for, tende a humanizar seu objeto, atribuindo-lhe propriedades humanas. Os objetos de suas preocupações cognitivas são, assim, subjetivizados, humanizados. Protágoras, por sua vez, ao afirmar que o homem é a medida de todas as coisas, não só antecipa uma das mais importantes teorias modernas do conhecimento, como aponta uma das características fundamentais da linguagem humana. Não deve nos surpreender que a ciência moderna não tenha podido se abstrair, desde seu início, da tendência a entender a natureza com o auxílio de conceitos que falam da própria natureza humana: “força”, “energia”, “atração”, “repulsão”, “fadiga” etc.

            Se nem na ciência natural, que é a ciência do cíclico, pode o ser humano evitar essa tendência a subjetivizar os diversos objetos de suas preocupações, como poderia se abster de fazê-lo ao pensar aquilo que escapa aos ciclos? O que em grande medida foge da repetitividade natural não é o que menos nos interessa como seres comunitários, muito pelo contrário. O que foge dos ciclos somos nós, paradoxalmente, seres naturalmente cíclicos. Somos nós, isto é, nós e nossa cultura. Isso cria uma dificuldade para quem quer entender os fenômenos antropológicos, sociológicos, a história e, em geral, a cultura humana — o cultivo que temos feito ao longo do tempo. Esse caráter não monotônico, não cíclico, exprime-se nas dimensões literárias, poéticas e, obviamente, na filosófica.

            O mundo humano é o mundo das infindáveis possibilidades. A dificuldade de entendermos outras culturas, outras épocas, mesmo línguas completamente diferentes das nossas, radica nessa abrangência infinita do pensar, do agir e do ser que é inerente à natureza humana e que nos faz tão distintos dos animais.

            O fato é que o dizer do ser humano foge do cíclico. O dizer humano habita o inesperado e chega a construir o impensado. Pois não poderia ser de outra maneira que novas formas de viver, de ser, de falar, encontram seu lugar na história humana. Coisas que podemos dizer hoje eram impossíveis, impensáveis, no passado. Num sentido, ao falarmos do imediato abrimos as brechas do possível e conseguimos, com o tempo, dizer o impossível. Portanto, o impossível e o impensável.

            É comunitariamente que abrimos tais brechas, de tanto falar sobre o imediato. De tanto desbravar o mundo afiamos os machados com que, golpe após golpe, inventamos novos universos. Esses machados são as palavras que nos permitem passar de mundos passados a mundos não vividos. Entramos em novas dimensões de vida que exigem de nós novos vocabulários, novas apropriações linguísticas. Mas novos termos, novas palavras, novos verbos são como que novos machados que abrirão, inventarão e desbravarão novos mundos. É assim como a linguagem cria e recria mundos. Cria, altera, inverte valores. Novas falas revalorizam o mundo. Mas cada uma dessas falas é local e temporalmente situada. Grupos falam, e mudam suas falas, porque seus hábitos mudam, porque são obrigados a mudar de costumes, porque são forçados a se integrar ao mundo de maneiras diversas e a se relacionarem, entre si, de novos jeitos.

            Desse ponto de vista, a linguagem humana não se limita a refletir o imediato, repetindo à saciedade o que sempre fora dito. Ela faz parte de um complexo processo de transformação do objeto e do próprio sujeito que termina na criação de mundos e seres humanos diferentes. Não é possível, então, simplesmente traduzir de uma língua numa outra para entender o que outros falantes queriam e querem dizer. Precisamos para isso integrar-nos nas suas práticas, nos seus hábitos. E, de alguma maneira, partilhar das projeções que estabelecem para si como indivíduos e como comunidades. O que implica sofrer suas frustrações, temer seus temores, rir nas suas alegrias e compartilhar suas esperanças.

            Não estamos, pois, fadados a ser assim ou assado. Nem, portanto, a falar deste ou desse jeito. Podemos ser mil coisas, tantas quantas as subjetividades de cada um de nós consigam desbravar velhas, gastas e transitadas objetividades.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

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