
Há pouco mais de uma semana, quem vai até a Rua dos Protestantes, no centro de São Paulo, se depara com o “ponto da Cracolândia” vazio.
Desde o dia 13 de maio, não há rastro dos usuários de drogas que ficavam ali. No entanto, a rapidez das ações e o mistério sobre o paradeiro dessas pessoas – além dos relatos de violência policial – levantam dúvidas sobre o que realmente aconteceu.
O esvaziamento repentino do local é tido como uma vitória pelas gestões municipal e estadual, atribuído às operações integradas de segurança e assistência social. A impressão que fica é a de que, para as autoridades, o problema, que atravessa décadas, foi finalmente resolvido.
No entanto, essa versão é questionada. O deputado estadual Eduardo Suplicy (PT-SP) e a vereadora Luna Zarattini (PT-SP) acionaram o Ministério Público na última quarta-feira (21) para investigar o paradeiro dos usuários e denunciar possíveis violações de direitos humanos.
O Portal iG ouviu moradores, voluntários e autoridades que acompanham a situação dos dependentes químicos para entender o cenário uma semana após o esvaziamento: afinal, a Cracolândia acabou de vez ou só mudou de lugar?
Visão sobre o problema destoa entre as autoridades
A promessa de acabar com a Cracolândia é uma das principais bandeiras de Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP). O próprio governador explicou, em um podcast, que as forças de segurança desarticularam a estrutura criminosa que sustentava o fluxo de usuários, a partir do fechamento de hotéis, ferros-velhos e bares usados para lavagem de dinheiro e apoio ao tráfico, inclusive na Favela do Moinho.
Em nota enviada ao Portal iG, a Secretaria de Segurança Pública do estado (SSP-SP) reforçou a fala do gestor – que combater o tráfico e a criminalidade no centro é prioridade do governo (veja a nota na íntegra no fim da reportagem).
“O centro de São Paulo, em especial as Cenas Abertas de Uso, é prioridade da gestão, que tem atuado de forma multisecretarial, em conjunto com a prefeitura, para combater a criminalidade, principalmente o tráfico de drogas, requalificar vias, e oferecer apoio e uma saída viável aos dependentes químicos”, diz o informe.
Segundo a SSP-SP, a Polícia Civil investiga e apreende drogas, enquanto a Polícia Militar reforça o policiamento com equipes especializadas em pontos estratégicos.
“No primeiro trimestre deste ano, as forças de segurança apreenderam 600 quilos de entorpecentes na região central. As forças de segurança têm atuado de forma integrada, buscando atacar o ecossistema do crime organizado na região”, diz a nota.
O vice-prefeito da capital, Coronel Mello Araújo (PL-SP), tem feito publicações diárias para celebrar o esvaziamento da Cracolândia. “Estamos vencendo essa guerra”, escreveu em uma delas. Em outra, chegou a afirmar que “a imprensa está inconformada porque não há dependentes químicos”.
O discurso, no entanto, não é unânime. O prefeito Ricardo Nunes (MDB-SP) se disse surpreso com as imagens da Rua dos Protestantes vazia e admitiu que “ainda está tentando entender” o que aconteceu.
“Não dá pra dizer que o problema da Cracolândia está resolvido”, disse, embora tenha ressaltado que a prefeitura já observava uma redução gradual no número de pessoas na região.
O documentarista Oslaim Brito, que acompanha a movimentação há 20 anos, compartilha da mesma visão do prefeito.
“A Cracolândia em si acabou, aquele ponto ali, mas o problema maior da dependência química não. Procurei o grupo que estava lá e não o encontrei em nenhum outro ponto da cidade. Eles desapareceram”, conta em entrevista ao Portal iG.
Ainda nesta semana, Oslaim esteve no local. Segundo o produtor, os relatos são de que a operação envolveu repressão e uma abordagem policial “bastante enérgica”, principalmente à noite.
Imagens recentes mostram cenas de violência. Na última sexta-feira, câmeras de segurança flagraram homens da Guarda Civil Metropolitana (GCM) agredindo pessoas em situação de vulnerabilidade, pouco antes da área ficar vazia. Nesta terça, a Corregedoria da Guarda informou que já identificou os agentes envolvidos e investiga o caso.
Em nota enviada ao Portal iG, a Prefeitura de São Paulo afirma que tem feito um trabalho contínuo para oferecer tratamento em saúde e atendimento social às pessoas em situação de vulnerabilidade, além de segurança para a população e combate ao tráfico de drogas.
“Entre janeiro e abril de 2025, foram registrados pelas equipes 9.947 encaminhamentos para serviços e equipamentos municipais e estaduais, um aumento de 29% em relação ao mesmo período de 2024 (7.731 encaminhamentos)”, diz a nota.
Ainda, afirma que “a Prefeitura realiza abordagens de forma ativa por 1.600 agentes, que oferecem acolhimento e encaminhamento a serviços de saúde e assistência social. A Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU) informa que a Corregedoria realiza apuração interna sobre as imagens que envolvem agentes da Guarda Civil Metropolitana. A GCM permanece em patrulhamento por toda a região central”.
“A ordem é se espalhar”, diz frequentador da Cracolândia
“O estado tomou uma decisão de que os usuários não podem ter um lugar fixo. A ordem é pra todo mundo se espalhar pela cidade”, denuncia Wagner Tavares Alves, que vive há 15 anos na Cracolândia.
O relato foi registrado em vídeo por Oslaim Brito. O material, produzido para seu novo documentário, foi cedido com exclusividade ao Portal iG.
“Ficou pior do que cachorro vira-lata. O cachorro tem muito mais valor do que um ser humano brasileiro”, desabafa Wagner, que, como outros, foi obrigado a deixar a rua dos Protestantes na semana passada.

“Não podia entrar manta, não podia entrar mais nada. A gente ficou molhando na chuva, por causa da ordem do estado”, diz.
Sem lugar fixo, ele conta que os usuários são obrigados a circular sem parar.
“Agora, só Deus sabe onde a gente tá. Por onde anda, em qualquer lugar aqui em São Paulo, o policiamento militar e a IOPE mandam andar. A gente não pode ficar parado.”
“Se a praça é pública, por que nós não podemos sentar numa praça pública? Eu quero entender. O próprio povo brasileiro tira a gente, sem direito nem de sentar“, questiona, revoltado.
“O que resta é a rua. Tem que circular, não pode ficar em terreno, não pode parar. Tem que viver andando, 24 horas, carregando a vida nas costas”, resume.
O Sheik Rodrigo Jalloul, da Mesquita da Penha, conhece bem a região, onde faz trabalho voluntário. Ele diz que é perceptível a ordem de dispersão entre os dependentes químicos.
“É visível pra quem anda na região que o pessoal desapareceu dali. Tem pequenos blocos que se reúnem de madrugada, mas quando a polícia chega, eles se dispersam. A prefeitura disse que ofereceu acolhimento e trabalho, mas não deixou claro onde estão essas pessoas, que clínica é essa, como tá esse tratamento”, diz, em entrevista ao iG.
Ele aponta que a ação tem sido mais uma questão para as autoridades performarem controle da situação do que uma solução real.
“Quando a gestão quer fazer zeladoria, mas não tem assistência social eficaz, o que dá a entender? Tiram o barraco, fazem a limpeza, mas as vidas continuam ali. Estão dando mais importância pra aparência do que pras vidas”, diz.
Cracolândia pulverizada
A enfermeira Fabiana Remédio é uma das voluntárias que há anos acompanha de perto a realidade do fluxo. Ela auxilia o trabalho de ONGs locais que atuam na distribuição de alimentos e na elaboração de currículos para a população vulnerável.
Em entrevista ao Portal iG, ela conta que observa, angustiada, a violência na região e que a Cracolândia, apesar de dispersa, está longe de ter acabado.
“Eles estão batendo mesmo. Estão batendo e expulsando. A Cracolândia não acabou, só espalhou. Se você olhar na Marechal, no metrô à noite, tá lotado. Na Santa Cecília, na Barra Funda, eles estão vindo pra cá. Eles estão muito assustados, porque estão sendo forçados, obrigados. Estão só enxugando gelo. Estão espalhando pra todos os lugares”, diz.
Na semana passada, a caminho de uma consulta médica, Fabiana presenciou uma cena que a deixou ainda mais indignada.
“Tinha uns moradores de rua dormindo ali embaixo do pontilhão, e a GCM batendo neles pra acordar. Eles estavam com cachimbo, sim, mas batendo pra acordar. Eu queria parar o Uber, mas não podia… tava cheia de ponto na cabeça. Fiquei desesperada”, afirma a enfermeira, que passou por uma cirurgia recentemente.
Segundo Fabiana, a repressão tem sido constante, ainda mais na região da Santa Cecília, onde mora. “Tá um caos. Eles estão batendo e expulsando daqui. Querem esvaziar, querem deixar São Paulo linda, mas estão espalhando. Estão batendo demais nos usuários, nos moradores de rua. Isso tá muito triste”, diz.
Para a enfermeira, o problema não se resolve na base da violência, nem do deslocamento. “Eles precisam de dignidade, precisam de vida, de emprego, de tratamento, de comida. Quem vai dar emprego pra eles? A maioria já teve passagem, já cumpriu pena. É dificílimo. Só algumas empresas dão essa oportunidade”, desabafa.
O Sheik Rodrigo Jalloul reforça que as ações visam mais à dispersão que ao acolhimento e à dignidade dessa população.
“Ali na Gamelinha, derrubaram 8, 9 barracos que estavam lá há quase 9 anos. Usaram trator, polícia fortemente armada… mas ninguém foi acolhido. Essas pessoas têm cachorros, trabalham com reciclagem, vivem ali há anos e não oferecem risco. Hoje estão do outro lado da rua, mais vulneráveis, na beira do rio, correndo risco de enchente”, conta.
“A cracolândia não acabou. O espaço físico desapareceu, mas ela é feita pelas pessoas, não por aquele quadrado. É impossível terem acolhido todo mundo. Parte foi levada, a gente não sabe pra onde, e outra parte tá dispersa, na Moca, Penha, Itaquera, com o padre Júlio Lancellotti, em vários cantos”, conclui o religioso.
O que dizem os dados da Saúde
A pedido do Portal iG, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) encaminhou dados do Painel de Monitoramento do Programa Redenção, que acompanha as ações na cena de uso. A comparação dos números entre janeiro e abril de 2025 revela que as abordagens de saúde e encaminhamentos para tratamento aumentaram nos últimos três meses.
Em janeiro, foram realizadas 6.895 abordagens de saúde. Já em abril, esse número saltou para 10.143, um aumento de 47%. Por outro lado, as abordagens socioassistenciais caíram de 6.080 em janeiro para 3.898 em abril, ou seja, uma redução de 35%. Ainda assim, o total de abordagens (saúde e assistência) cresceu de 12.975 para 14.041 no período.
Os direcionamentos para o HUB Álcool e Drogas subiram de 506 em janeiro para 1.287 em abril (mais de 154%). Também cresceram os encaminhamentos para a rede de saúde, que passaram de 186 para 274 (47% de aumento). Por outro lado, caíram os envios para leitos hospitalares, de 71 para 37, e também para o serviço de acolhimento do SIAT II, que reduziu de 184 para 97.
No campo do tratamento, a quantidade de pacientes atendidos nos CAPS AD (Álcool e Drogas) foi de 2.876 em janeiro para 4.207 em abril, um crescimento de 46%. O número de acolhimentos também subiu, especialmente no SIAT I, que foi de 182 para 646 pessoas acolhidas.
No entanto, vale ressaltar: a reportagem observou que os dados não detalham quais são as clínicas ou unidades responsáveis por esses atendimentos, nem sobre os locais de trabalho ofertados para os inscritos nos programas de ressocialização.
Segundo o painel, o número de beneficiários ativos no programa POT Redenção ficou praticamente estável, com 984 em janeiro e 961 em abril.
Já no indicador chamado “Porta de Saída”, que mede quem conseguiu autonomia de moradia, de renda ou reunificação familiar, os números cresceram de 83 em janeiro para 388 em abril somando todas as categorias. Mas, novamente, sem indicação de onde estão esses empregos, rendas ou moradias.
Nem viciados, nem moradores: descaso generalizado
Rose Correa, presidente da Renascentro – Associação de Moradores do Campos Elíseos, Luz, República e Santa Ifigênia, vive diariamente os impactos da Cracolândia. Ela mora na Rua Gusmões, que cerca o principal ponto de consumo de drogas. Ao Portal iG, ela afirma que ainda existem focos de uso nos arredores.
“Você vê vários focos, pequenos e bem espalhados pelo bairro. Se você vê fezes na rua, sacos de lixo, sujeira, é sinal de que um usuário passou por ali”, relata.
“Então não, a Cracolândia não acabou. O que acabou foi o espaço tomado por eles na Santa Ifigênia. O problema continua e vai demorar pra acabar, porque são muitos jovens nisso tudo. Essa é minha lástima”, diz.
Ela também critica tanto o governo quanto algumas ONGs que, segundo ela, “precisam manter a resistência ali porque vivem de recurso público”, mas pouco se importam com o bem-estar de quem mora por ali.
“Ninguém, nem governo, nem as malditas ONGs, se preocupam com os moradores. O que tem de gente no meu prédio fazendo tratamento psicológico não é brincadeira. Eu mesma sou jurada de morte”, dispara.
Rose conta que os moradores não recebem nenhuma assistência.
“Você pode desmaiar na frente deles, se não for usuário, você não será atendido “, diz.
Ao ser questionada se prefeitura e governo possuem algum programa voltado especificamente para os moradores dos locais afetados pelo fluxo, a resposta é direta: “Não tem. Pra morador, não tem nada. Agora, pra eles, tem sim. Tem bolsa. Eles pegam e trocam por essas coisas”.
O iG tentou contato com integrantes da ONG Craco Resiste, uma das principais atuantes na região, para mais esclarecimentos. No entanto, a reportagem não obteve retorno até a publicação.
Nota da Secretaria de Segurança Pública
O centro de São Paulo, em especial as Cenas Abertas de Uso, é prioridade da gestão, que tem atuado de forma multisecretarial, em conjunto com a prefeitura, para combater a criminalidade, principalmente o tráfico de drogas, requalificar vias, e oferecer apoio e uma saída viável aos dependentes químicos.
A Polícia Civil realiza investigações constantes que têm resultado na apreensão de entorpecentes e na identificação de integrantes de organizações criminosas. Já a Polícia Militar mantém o policiamento ostensivo com reforço de efetivo e emprego de equipes especializadas, atuando em pontos estratégicos. No primeiro trimestre deste ano, as forças de segurança apreenderam 600 quilos de entorpecentes na região central. As forças de segurança têm atuado de forma integrada, buscando atacar o ecossistema do crime organizado na região.
As medidas de segurança são executadas em conjunto com ações da Secretaria Estadual de Saúde e da Secretaria de Desenvolvimento Social, com ampliação do número de leitos para tratamento e acolhimento de dependentes químicos que buscam ajuda. Mais de 30 mil atendimentos já foram realizados no Hub de Cuidados e em casas terapêuticas desde 2023. Novos serviços foram implantados por meio da Secretaria de Desenvolvimento Social e mais de 695 leitos instalados para atendimento exclusivo de pacientes atendidos no HUB. Esse conjunto de ações permitiu a diminuição crescente do número de dependentes químicos na região e a requalificação de vias que antes eram tomadas pelo fluxo.
Nota da Prefeitura
A Prefeitura de São Paulo reafirma que tem feito um trabalho contínuo para oferecer tratamento em saúde e atendimento social às pessoas em situação de vulnerabilidade por uso abusivo de álcool e drogas, além de segurança à população em geral, combatendo o tráfico de drogas e outros crimes. Entre janeiro e abril de 2025, foram registrados pelas equipes 9.947 encaminhamentos para serviços e equipamentos municipais e estaduais, um aumento de 29% em relação ao mesmo período de 2024 (7.731 encaminhamentos). Em lugares com ocupações momentâneas ou periódicas na cidade, por pessoas em situação de rua, usuários ou não de drogas, a Prefeitura realiza abordagens de forma ativa por 1.600 agentes, que oferecem acolhimento e encaminhamento a serviços de saúde e assistência social. A Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU) informa que a Corregedoria realiza apuração interna sobre as imagens que envolvem agentes da Guarda Civil Metropolitana. A GCM permanece em patrulhamento por toda a região central.
O Portal iG tentou contato com o vice-prefeito, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem