Terra indígena Kayapó está invadida por facções criminosas, diz liderança

Nas duas últimas semanas, o governo federal deu início ao processo de desintrusão da Terra Indígena (TI) Kayapó, no sul do Pará. O território indígena é o mais invadido por garimpos ilegais na Amazônia. A operação de retirada dos invasores destruiu maquinários pesados, como retroescavadeiras, balsas e dragas, e estruturas de apoio utilizadas pelos garimpeiros. A Casa Civil, pasta que coordena a desintrusão, estima que as ações no território resultaram em perdas de mais de R$ 12 milhões.

“Vimos o quanto de prejuízo ao garimpo houve nessa desintrusão. Claro que eles vão ficar insatisfeitos e vão buscar algum culpado”, avalia O-é Kaiapó Paiakan, a primeira mulher indígena a assumir o posto de coordenadora regional da Funai na TI  Kayapó. 

Aos 41 anos, O-é Kaiapó é uma das primeiras cacicas do povo Mebêngôkre (autodenominação do povo Kayapó), nomeada em 2021. Ela avalia que a desintrusão representa um grande passo na retomada do território. Seu pai, Paulinho Paiakan, foi uma das lideranças que atuou para a demarcação do território e pela inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988.

Há ainda um longo caminho pela frente. Em entrevista à Repórter Brasil na última sexta (16) em Tucumã (PA), O-é Kaiapó afirmou acreditar que só a desintrusão não irá resolver os problemas que, há décadas, estão enraizados dentro da área onde cresceu. Problema que teve início, na sua avaliação, na permissão das invasões pelo Estado brasileiro.

A TI Kayapó tem 3,2 mil hectares e abriga 6,3 mil indígenas dos povos Mebêngôkre e Isolados do Rio Fresco. Em 2024, foi o território indígena que mais sofreu com queimadas. A coordenadora alerta ainda para a atuação de facções criminosas nas aldeias, relacionadas ao garimpo ilegal que assola a região. 

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Ela teme também pela reação dos invasores após a desintrusão. Na TI Apyterewa, também no Sul do Pará, os Parakanã continuam enfrentando a violência, dois anos após a retirada dos invasores. Na semana passada, mais um indígena foi baleado.

O-é Kaiapó cobra políticas públicas adaptadas à realidade dos povos indígenas da região. “Não estamos pedindo prioridade nem exclusividade. Apenas que respeitem os nossos direitos, a nossa cultura”.

Confira abaixo trechos da entrevista:

Repórter Brasil – O que a desintrusão que está acontecendo agora representa para você e para o povo Mebêngôkre?

O-é Kaiapó – A desintrusão é o fortalecimento do nosso futuro. Eu vejo como um desafio muito grande, mas é o nosso futuro. Precisamos, de fato, deixar isso de uma forma prolongada.

A operação de desintrusão na Terra Indígena Apyterewa, no Sul do Pará, ocorreu em outubro de 2023, mas a violência continua. Em termos de políticas públicas, o que é preciso para que uma desintrusão de fato aconteça?

É preciso o fortalecimento das políticas públicas dos governos federal, estadual e municipal e a conscientização desses gestores sobre a importância do povo indígena. Vemos muita falta de apoio por parte desses órgãos. Nós vemos uma barreira nos municípios com o estereótipo de que o indígena nasce e já ganha uma renda do governo, de que indígena não paga imposto. Há uma discriminação enorme com a população indígena [por parte dos municípios] para simplesmente não se comprometerem com a sua responsabilidade. Jogam tudo para cima de onde? Da Funai e dos Dsei [Distritos Sanitários Especiais Indígenas].

Quando falamos de políticas públicas, estamos falando do quê? O que a comunidade precisa dentro do território? O que precisa chegar que não está chegando ainda?

Educação de qualidade, com infraestrutura, com materiais didáticos específicos na língua do povo Kayapó. Incluir as lideranças indígenas é de suma importância, para que participem juntamente com os professores não indígenas, para que não deixem apagar o nosso conhecimento. É preciso levar isso para dentro da sala de aula. 

Na saúde, [é preciso] ter um atendimento mais humanizado, um cuidado diferenciado com o povo indígena. Não estamos pedindo prioridade nem exclusividade. Apenas que respeitem os nossos direitos, a nossa cultura.

[Também é preciso] a inclusão dos povos indígenas nos programas sociais. O programa social onde os povos indígenas mais estão incluídos é o Bolsa Família. Nós temos mais de 30 programas sociais dos governos federal e estadual. É preciso incluir os povos indígenas que estão dentro e fora do território. 

Operação de desintrusão na TI Kayapó inutilizou maquinários pesados utilizados no garimpo ilegal de ouro no território (Foto: Secom/Casa Civil)
Operação de desintrusão na TI Kayapó inutilizou maquinários pesados e estruturas de apoio ao garimpo ilegal de ouro no território – Secom/Casa Civil

Muitos estão fora por falta de políticas públicas dentro do território. Buscando educação melhor, buscando qualidade de vida de outra forma. Ninguém está na cidade por estar. Muitos também estão ocupando os cargos, assim como eu, assim como muitos que estão fora do território. As melhorias dessas políticas públicas são fundamentais dentro do território.

Por que as terras indígenas são invadidas? De quem é a responsabilidade?

Do Estado. O Estado tem uma responsabilidade muito grande. [A invasão] foi imposta dentro da terra indígena na década de 1980, e até hoje se tem esse processo [essa ideia] de que a renda com atividades ilícitas é também uma forma de renda para a comunidade. Isso não trouxe nenhum avanço, apenas tivemos prejuízos com muito desmatamento e destruição dentro do território. Precisamos fazer essa correção dentro do território e com o povo Kayapó.

Quais atividades ilegais funcionam dentro da TI Kayapó hoje? Por quem a TI está invadida?

Vemos uma invasão preocupante com organizações criminosas dentro do território. Isso impacta muito na vida social do povo Kayapó. Prejudica muito o futuro das crianças e dos jovens que hoje presenciam isso achando que é natural. 

Essas facções estão relacionadas ao garimpo também?

Sim. Estão relacionadas ao garimpo. E isso não é a coordenadoria [da Funai] que está falando. Isso [desmantelamento de atividades criminosas] é uma atividade que a segurança pública faz, a Polícia Federal, o Ibama. 

Quando você fala de organizações, está falando de tráfico dentro da TI? O que estava acontecendo? 

Sim, são organizações pesadas que acabam ensinando coisas erradas ao povo Kayapó. Tem a influência de drogas, de bebida alcoólica, prostituição. Acabam inserindo essas coisas erradas aos jovens, aos adolescentes. E isso não é benéfico para o povo Kayapó. Não é isso que a gente quer buscar para o nosso futuro. E além disso, há o desmatamento e a pobreza.

E você acredita que a desintrusão vai resolver tudo isso?

A desintrusão é o início de um processo. Não posso afirmar hoje que a desintrusão irá resolver tudo isso. Mas a desintrusão é uma porta de entrada para que a gente possa, conjuntamente, buscar essa solução de melhorias para dentro da Terra Indígena Kayapó.

Em 2024, a Terra Indígena Kayapó foi a que mais sofreu com incêndios florestais. O que vocês esperam para esse ano? Estão preocupados?

Essas queimadas nos pegaram de surpresa. Não esperávamos tantos focos, inclusive no meio do território. Precisamos de mais brigadas dentro da Terra Indígena Kayapó, mais preparo do estado e do município para nos ajudar no combate às queimadas. Isso nos prejudicou bastante. Acabamos perdendo a caça, que vai cada vez para mais longe. A atividade de colheita de castanha e de cumaru acabou se perdendo, porque queimaram bastante castanhais. A roça também se perdeu bastante. Isso afeta muito o povo Kayapó.

Como está a sua segurança nesse processo de desintrusão? Você tem sofrido ameaças?

É preocupante porque eu tenho família. Além disso, eu sou do território Kayapó. Eu preciso realmente dessa segurança. Eu vivo no olho do furacão, no meio desses garimpeiros, desses madeireiros. 

Você está tendo respaldo do Estado para a sua segurança?

Eu tenho me preparado para isso, coloquei isso em pauta, juntamente com outras lideranças, quando fui a Brasília. Muitos acabam confundindo e culpam a Funai. Sabemos do perigo porque vimos o quanto de prejuízo ao garimpo houve nessa desintrusão. Claro que eles vão ficar insatisfeitos com isso e vão buscar algum culpado.

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