Garimpo na Amazônia: quando a sobrevivência é confundida com escolha

“Fiquei dias comendo só farinha e dormindo em rede encharcada. Vi gente morrer de malária, vi parto acontecer no mato, sem nenhuma ajuda.” O relato é de *João Silva (nome fictício para resguardar a fonte), garimpeiro com mais de 30 anos de vivência em áreas de extração de ouro na Amazônia. Sua história se mistura à de milhares de brasileiros que, empurrados pela miséria, encontram nos garimpos não uma opção, mas a saída possível.

Enquanto o debate sobre mineração ilegal cresce no noticiário por suas implicações ambientais — como o envenenamento dos rios por mercúrio e a destruição de territórios indígenas — pouco se fala sobre quem está lá, no meio da lama e do silêncio: os trabalhadores. Homens e mulheres como Francisco dos Santos Silva, cujas histórias escancaram a face esquecida do garimpo: o trabalho análogo à escravidão.

Essas pessoas não são aventureiras em busca de fortuna fácil. São sobreviventes de um sistema excludente que, há décadas, repete o mesmo roteiro: pobreza no sertão nordestino, promessas de riqueza no Norte, migração forçada e abandono estatal. João andou por dias até chegar ao garimpo no alto rio Mucajaí, em Roraima. Chegou doente. Saiu pior.

Nos acampamentos improvisados, a vida é marcada pela escassez. Falta comida, falta atendimento médico, falta respeito. E sobra exploração. Muitos trabalham em troca de dívidas, comida ou promessas que nunca se cumprem. O ouro extraído segue o caminho da ilegalidade, movimenta bilhões e abastece mercados de luxo — enquanto os corpos de quem o extrai apodrecem esquecidos na floresta.

A Amazônia tem sido saqueada com a conivência de quem deveria protegê-la — e os garimpeiros, ao contrário do que pensa o senso comum, também são vítimas desse modelo. A narrativa que os transforma em vilões serve apenas para esconder os verdadeiros beneficiários da destruição: empresários ilegais, redes de lavagem de dinheiro e uma elite que lucra com o caos.

É hora de romper o silêncio. As histórias de Joãos, Franciscos e Josés não podem continuar sendo invisibilizadas. É urgente que o Estado brasileiro atue com responsabilidade, não apenas para coibir o garimpo ilegal, mas para oferecer alternativas reais de vida digna para quem hoje arrisca tudo por migalhas de ouro. O garimpo não é apenas um problema ambiental — é uma desgraça social que sangra há décadas.

Enquanto seguirmos tratando essas pessoas como descartáveis, não haverá justiça ambiental possível. A Amazônia pede socorro. E quem está lá dentro, nas suas entranhas, também.

A formação social e econômica de Roraima está intrinsecamente ligada aos ciclos de garimpagem. O movimento migratório de milhares de nordestinos que, como José Clarindo, foram levados a deixar suas terras em busca de oportunidade. José relembra o início da década de 1980, quando, ainda jovem, caminhou dias a pé pela mata fechada até chegar a um garimpo no alto rio Mucajaí. Enfrentou malária, fome e solidão, mas persistiu.

Essas trajetórias individuais compõem um mosaico de luta coletiva que continua vivo até hoje, marcado pelo desamparo estatal e por ciclos de promessas frustradas. A ausência de políticas públicas eficazes transforma os garimpos em territórios de exceção, onde a lei do mais forte e a lógica do lucro imediato imperam.

João Silva, hoje com mais de 60 anos, carrega no corpo e na memória os rastros de uma vida inteira dedicada ao garimpo. Ele trabalhou em diversas frentes, não só na Amazônia brasileira, mas também no Suriname e na Venezuela. Em depoimento, relembra os longos períodos sem comida, a convivência forçada com doenças como a leishmaniose, os acidentes com dinamite, e a tensão permanente diante da presença de forças policiais.

“Eu vi amigo morrer de infecção por corte no pé. Vi criança nascer em barraco de lona, sem parteira. Vi muita coisa que ninguém lá de fora acredita”, relata Vicente. Sua fala é um grito por reconhecimento, um testemunho vivo de que o garimpo não é apenas um lugar de trabalho — é também um campo de exclusão social.

A mineração ilegal na Amazônia não é apenas uma questão ambiental ou econômica: é, antes de tudo, uma questão humana. Esses relatos denunciam as violações de direitos e evidência a urgência de políticas públicas que considerem os sujeitos que vivem e trabalham nesses territórios invisibilizados.

Dar voz às histórias é um ato de resistência e de memória. É afirmar que por trás de cada garimpeiro existe uma vida marcada por escolhas difíceis, por sonhos interrompidos e por uma dignidade que insiste em resistir, mesmo diante da lama, da fome e do esquecimento.

*Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em gênero, identidade e cidadania; Cientista social, licenciada em Sociologia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônia (REPAM-Brasil) e da Cáritas Brasileira.

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