
Nas últimas semanas, o fenômeno dos chamados “bebês reborn” tem gerado debates acalorados. Para quem não está familiarizado, trata-se de bonecos com aparência extremamente realista, produzidos artesanalmente, com o objetivo de simular um recém-nascido.
Existe, inclusive, um mercado consolidado em torno deles – com roupas, berços e até certidões de nascimento.
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Bebês reborn são usados em contextos diversos
Mais do que modismo, os bebês reborn têm sido utilizados em contextos diversos: podem ajudar mulher em processo de luto, crianças em fase de simbolização, pessoas com demência em busca de conforto emocional.
Por isso, antes de qualquer julgamento, é preciso reconhecer que esses usos expressam necessidades humanas legítimas – mesmo quando escapam à lógica comum ou desafiam o senso de normalidade.
Também há casos – estes que costumam causar mais inquietação social – em que mulheres adultas passam a fantasiar o cuidado com os bebês reborn como se fossem filhos reais.
Trata-se de uma dinâmica psíquica complexa, que pode ser analisada sob diferentes perspectivas, incluindo a psicanálise. Esse tipo de reação costuma atrair olhares mais críticos ou preocupados, mas, ainda assim, revela o poder simbólico desses bonecos.
Experiência com alunos do oitavo ano
Essa reflexão sobre a força dos vínculos simbólicos me levou a recordar uma experiência que vivi como professora do oitavo ano do ensino fundamental em uma escola pública de Vitória-ES.
Em um dia aparentemente rotineiro, notei algo fora do habitual: alunos – tanto meninos quanto meninas – estavam levando bichinhos de pelúcia para a sala de aula. Permaneciam abraçados a eles, deixavam-nos sobre a carteira, ou mesmo os levavam para o recreio.
Estranhei. Não sabia se deveria proibir, orientar ou simplesmente ignorar. A situação ficou ainda mais delicada quando percebi que alguns estudantes estavam usando chupetas – sim, pré-adolescentes de 13 anos com chupetas na boca durante a aula.
Já presenciei alunas passando esmalte em sala, o que entendo como uma forma de desrespeito ao ambiente pedagógico.
Mas ali havia algo diferente, mais difícil de rotular. Senti um certo desconforto – de quem intui que há algo mais profundo acontecendo e ainda não encontrou as palavras para nomear.
Por sorte, havia um psicólogo escolar – algo cada vez mais raro nas instituições públicas – e fui conversar com ele. É importante lembrar que esse profissional, no contexto escolar, não atua como terapeuta clínico, mas como agente institucional.
Relatei a ele minha preocupação: será que o uso de objetos infantis por adolescentes indicava sofrimento psíquico? Seria o caso de encaminhamento? O que isso dizia sobre aqueles estudantes?
Professores se deparam com demandas emocionais
Nós, professores, nos deparamos diariamente com demandas emocionais que extrapolam a formação acadêmica.
Nossa formação raramente contempla o campo da saúde mental e, ainda assim, somos, muitas vezes, o primeiro adulto atento a notar sinais de sofrimento, violência, desajuste ou abandono.
Fui buscar ajuda porque não queria agir com base apenas no meu estranhamento.
Já conhecia o conceito de “objeto transicional”, que li em textos de Donald Winnicott, pediatra e psicanalista britânico. Em seu clássico artigo Objetos Transicionais e Fenômenos Transicionais (1951), Winnicott afirma:
“Introduzi as expressões ‘objeto transicional’ e ‘fenômeno transicional’ para designar a área intermediária da experiência, entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação objetal, entre a atividade da criatividade primária e a projeção do que já teria sido introjetado”.
Objetos transicionais e o que representam
Os objetos transicionais – um paninho, uma fralda, um urso de pelúcia – representam a primeira experiência de separação do bebê em relação à mãe. Eles ocupam um espaço entre o mundo interno e o externo, funcionando como apoio emocional diante da ausência da figura materna.
Segundo Winnicott, o desenvolvimento saudável do bebê depende da presença de uma “mãe suficientemente boa”, ou seja, uma cuidadora capaz de estar sintonizada com as necessidades físicas e emocionais da criança, ainda que de maneira imperfeita. Ele explica:
“É comum a mulher entrar em uma fase, da qual é comum ela se recuperar em algumas semanas ou meses após o nascimento do bebê. Durante essa fase, em grande medida, a mãe é o bebê e o bebê é a mãe”.
É nesse período de simbiose que se constrói a base da personalidade. O bebê, ainda incapaz de distinguir o “eu” do “não-eu”, experimenta o mundo a partir da segurança do colo (“hold”), da presença constante, da resposta sensível aos seus choros.
Quando essa continuidade falha – por ausência, negligência ou sofrimento emocional da mãe –, o bebê pode desenvolver estratégias de sobrevivência psíquica.
O objeto transicional entra em cena como substituto parcial da presença materna. E essa lógica, segundo Winnicott, pode ser atualizada ao longo da vida em diferentes formas.
Na adolescência, esse papel pode ser desempenhado por diários, músicas, grupos, ideologias, personagens. Na vida adulta, manifesta-se nas atividades criativas, na espiritualidade, na arte, nos vínculos.
Como ele mesmo defende, a regressão – movimento psíquico em que o indivíduo recua simbolicamente a estágios anteriores do desenvolvimento em busca de segurança emocional – não é, por si só, patológica.
É uma tentativa de restaurar o sentimento de segurança. Torna-se problemática apenas quando o ambiente não responde adequadamente ou quando se cristaliza, impedindo o amadurecimento psíquico.
Indicativo de carência afetiva ou insegurança emocional
Voltando à minha experiência, o psicólogo concluiu que não havia sinais de risco ou prejuízo concreto aos alunos. Era algo que merecia atenção, sim, mas não necessariamente intervenção direta.
Compreendi que talvez o incômodo maior fosse meu, ao deparar-me com uma cena que desafiava o que eu esperava daquele grupo etário – que me gerava estupefação.
A presença dos objetos infantis podia ser, sim, indicativo de carência afetiva ou insegurança emocional, mas eu não poderia, sozinha, elaborar um diagnóstico.
Às vezes, ao enfatizar um comportamento que não está causando dano real a ninguém, corremos o risco de rotular precocemente e, assim, agravar um sofrimento que poderia ser passageiro.
Escola é espaço de múltiplas infâncias e adolescências
A escola é um espaço de múltiplas infâncias e adolescências. E, muitas vezes, o que parece “estranho” é apenas o reflexo de uma subjetividade tentando sobreviver.
Por isso, antes de julgar, é preciso lembrar que as noções de normalidade e anormalidade são históricas e culturais.
Se um comportamento não representa ameaça a terceiros e oferece algum alívio ou função psíquica a quem o pratica, talvez o melhor a fazer seja permitir, observar – e acolher.
Tenho para mim que as pessoas que mais exigem dos outros uma suposta normalidade são justamente as que as que mais lutam para conviver com suas próprias perturbações.
E, como professora, aprendi que às vezes o gesto mais pedagógico é dar espaço, respeitando aquilo que ainda não conseguimos compreender por inteiro.
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