RivoTrio: o bloco que transforma a cidade por meio da arte e da luta antimanicomial

O Bloco do RivoTrio é um dos movimentos culturais mais potentes de luta antimanicomial na capital federal. Surgido em 2011 a partir de uma conversa entre usuários da saúde mental, familiares e trabalhadores do coletivo Inverso, o bloco foi concebido como uma resposta à exclusão das pessoas em sofrimento psíquico da maior festa popular do país. “Muitos nunca tinham pulado carnaval. Havia paranoia, pânico, sedação, internações nesse período. Era uma segregação real”, explicou o professor e psicólogo clínico Thiago Petra, um dos idealizadores do RivoTrio, em entrevista ao Brasil de Fato DF.

Com oficinas de marchinhas, fantasias e estandartes, o RivoTrio cresceu — de 15 pessoas no início para cerca de cinco mil nas últimas edições — e consolidou-se como um coletivo que articula arte, política e cuidado. “Desejamos transformar alas psiquiátricas em alas carnavalescas”, afirmou Petra, apostando no carnaval como espaço de expressão e pertencimento.

Mais do que um bloco, o RivoTrio atua o ano todo com intervenções urbanas, como lambe-lambes, mosaicos e performances, especialmente em datas simbólicas como o 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial. “A intervenção urbana é um ato político que desestabiliza estruturas de dominação e questiona a elitização do espaço público”, destacou.

“É uma folia ativista que coloca na cidade diversas possibilidades de existência”, afirma Thiago Petro – Foto: Arquivo/Bloco do RivoTrio

A relação entre loucura e carnaval é vista como uma provocação estética e política. “O que é delírio pode ser uma bela fantasia. O carnaval é uma grande loucura”, diz Petro. O coletivo recusa a lógica da patologização e enfatiza a importância do o cuidado em liberdade e a valorização da singularidade. “A vida não cabe em um diagnóstico”.

Críticos à atual política de saúde mental do DF, o RivoTrio denuncia a permanência do Hospital São Vicente de Paulo — “um lugar altamente mortífero, ilegal e símbolo do desprezo” — e a expansão das chamadas Comunidades Terapêuticas. “As CTs são manicômios modernos, sem cuidado ético ou fiscalização. São lugares de adoecimento e morte”, apontou o professor.

Para o coletivo, o fortalecimento da Rede Pública de Atenção Psicossocial é urgente e inegociável: “Lutamos por uma atenção comunitária, horizontal, integrada ao território, onde o usuário seja protagonista do seu cuidado. Um cuidado digno, em liberdade.”

Brasil de Fato DF – Como surgiu a ideia para criação do Bloco RivoTrio? Conte um pouco sobre a história e a origem do nome.

A ideia começa na virada de 2010 para 2011, em janeiro, em uma conversa entre eu e a Terezinha Rocha, frequentadora da Inverso – que é um Centro de Convivência e Cultura em Brasília – pensando em ocupar a cidade com o tema da saúde mental e assim fazer um bloco de carnaval. Levamos a ideia para as demais pessoas que frequentavam a Inverso. Então, começou o ano, as oficinas e perguntamos para os frequentadores da Inverso: “Qual é a história que vocês têm com o carnaval?”; “Vocês topam fazer um bloco de carnaval?”.

Muitos, a grande maioria, nunca tinham pulado o carnaval. Tinha o fato de que eles mesmos não se sentiam seguros e à vontade em um bloco de carnaval porque muitos tinham paranoia, pânico, fobia ou estavam medicados, sedados, e o carnaval trazia muita agitação. Outro fator era que os familiares não deixavam seus parentes diagnosticados participarem do carnaval com medo que acontecesse alguma coisa eles. Outros frequentadores da Inverso tinham um histórico longo de internações durante o período de carnaval. A gente viu que tinha uma segregação mesmo, real, porque as pessoas não conseguiam festejar essa festa popular, tão tradicional na cultura brasileira.

Aí a gente propôs criar um ambiente propício, acolhedor, de cuidado, de atenção. Explicamos a ideia e todo mundo topou. A partir daí, as oficinas começaram a trabalhar as marchinhas, as fantasias e a história do carnaval. Pesquisamos os diversos símbolos carnavalescos e criamos um estandarte. Começamos com 15 pessoas, em 2011, isso foi aumentando gradativamente ao longo dos anos. Nas últimas três edições (2023, 2024 e 2025), tivemos uma média de cinco mil pessoas na rua em cortejo.

Hoje o Bloco do RivoTrio é um coletivo de usuários, familiares, trabalhadores e trabalhadores (da saúde, das artes e ciências sociais) que coloca em diálogo a interface do carnaval com a saúde mental. E que tem a intensão de fomentar uma cultura popular antimanicomial na cidade, ou seja, da saúde mental e as pessoas ocuparem, participarem e pertencerem ao espaço urbano. É uma folia ativista que coloca na cidade diversas possibilidades de existência. Para a rua não ser só apenas lugar de passagem, mas um lugar de encontro. Desejamos transformar alas psiquiátricas em alas carnavalescas, onde tenha espaço a fantasia, o desejo, a vontade e outras expectativas de vida. Queremos assim combater a precarização do cotidiano.

Quais atividades o bloco realiza? Elas acontecem para além do carnaval?

Além do tradicional cortejo de carnaval, também promovemos intervenções urbanas na cidade ao longo de todo ano. Principalmente em datas significativas, como o 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial; e o 10 de outubro, Dia Mundial da Saúde Mental.

Dessa forma promovemos um diálogo entre a loucura e a cidade, onde pessoas diagnosticadas tradicionalmente com transtorno mental utilizam da arte do mosaico, estêncil, lambe-lambe, performances e instrumentos musicais para expressar sua existência na cidade. Construímos essa iniciativa por intuir que a intervenção urbana é uma ação política que desestabiliza as estruturas institucionais de dominação e questiona a elitização do espaço público. É o exercício da singularidade dentro da homogeneidade, promovendo o empoderamento urbano.

Produzimos novas maneiras de ser e estar, habilitando a pessoa dita louca a reconhecer o papel do espaço urbano em sua biografia. O ser humano anseia pela integração com seu meio, onde possa ser autônomo e protagonista, superando o isolamento e a total subordinação. A intervenção urbana torna-se então um ato necessário diante a segregação e a clausura. A cidade é, dessa forma, um lugar privilegiado de escuta e afeto, lugar soberano da vida. O Bloco do RivoTrio cria assim um novo lugar sociopolítico, cultural e conceitual para tal diversidade. Libertando os loucos dos hospitais psiquiátricos e a arte dos museus, transformando a rua numa grande galeria delirante.

Qual a relação entre a loucura e o carnaval? Como isso se conecta com a luta antimanicomial?

A palavra “folie” em francês significa loucura. A pessoa que acha que é Napoleão pode ser Napoleão mesmo no carnaval, o que é delírio pode ser uma bela fantasia, porque o carnaval é também um grande delírio, uma grande loucura. Um momento de catarse, de alforria diante da razão e da sociedade utilitarista.

Na verdade não existe o diagnóstico de loucura. A gente tem sim o estigma da loucura. Loucura é polissêmica, ela tem vários significados.

Quando a gente diz que uma pessoa ou um grupo fizeram uma loucura, isso pode ser uma coisa boa ou pode ser uma coisa ruim. Talvez a loucura seja então um sentimento, uma emoção, um afeto, uma paixão, um comportamento desmedido.

O Bloco do RivoTrio, trabalhando a interface cultural do carnaval com a saúde mental, coloca a doença entre parênteses, ou seja, adota como objeto da ação a pessoa, a totalidade da sua existência e seu contexto cultural; não reduz a pessoa a um diagnóstico. Aliás, a vida não cabe em um diagnóstico.

Temos como objetivo o cuidado e não a cura; o que nos interessa é a singularidade e expressividade da pessoa. Promovemos assim o respeito à integridade física e psicológica e aos plenos direitos das pessoas que estão em sofrimento. Promovemos a inclusão social e não o enclausuramento. Lutamos por um cuidado digno em liberdade, em contato com a cidade. Cultivamos múltiplas formas de escuta, de cuidado e interação que oportunizem as trocas sociais. Enfatizamos essas somas e trocas por meio do encontro, colocando em movimento os sentimentos e emoções das pessoas; suas histórias, vivências, conflitos, vontades e desejos. Criamos laços e novas maneiras de estar e de participar no mundo.

Como o coletivo enxerga a situação da política de saúde mental no DF atualmente, tendo em vista por exemplo as recentes mortes do Hospital São Vicente de Paulo (HSVP) e a baixa cobertura de Centros de Atenção Psicossocial (Caps)?

O Hospital São Vicente de Paulo é um lugar altamente mortífero; já matou e continuará matando. Fora diversos outros danos e traumas causados na população. O HSVP é o último degrau, a última escala da cadeia alimentar do desprezo. E é uma instituição ilegal, pois a Lei Distrital 975/95, em seu artigo 4º, regula o fechamento desse hospital psiquiátrico que insiste em permanecer. Ele deveria ter sido fechado ainda no ano de 1999.

O pensamento e a prática manicomial formam uma lógica que fere os direitos humanos em grande magnitude. Essa lógica vem historicamente de uma demanda antisséptica, ou seja, higienista.

O poder dominante criou de forma arbitrária uma concepção de homem ideal. O ser humano branco, macho, racional, consumidor. Com isso as pessoas indesejadas, e aí a loucura, são alvo constante de opressão, segregação e enclausuramento.

A lógica manicomial fere assim a dignidade, cidadania, identidade, personalidade e a existência da pessoa. Inverte a lógica do cuidado, da preservação da singularidade e diversidade humana, bem como do senso coletivo e comunitário. Então, vivemos numa sociedade baseada na trama da individualidade e competitividade homogênea, eliminando do convívio pessoas que possuem outra forma de pensar, agir e ser. Não é reconhecida a existência do outro que é diferente de mim. A alteridade é isolada, fala sozinha, para não provocar transformações no cotidiano social.

Além do HSVP existem também diversas clínicas psiquiátricas que funcionam em sistema fechado, carcerário, que se utilizam da hipermedicalização, da contenção química. E temos as Comunidades Terapêuticas (que no fundo nem são comunidades e nem terapêuticas). As CTs são a nova faceta dos manicômios. São lugares afastados/isolados, em núcleos rurais, sem nenhum tipo de cuidado especializado ou ético, sem fiscalização eficaz. É um lugar de julgamento e condenação moral, lugar proibicionista e punitivista. E o estado de miséria incentiva esses lugares. Espaços que não tem nenhum compromisso com a saúde, com a inclusão social, com a dignidade. É um lugar de despersonalização, de adoecimento e morte.

Existe um lobby muito forte da indústria farmacêutica, de clínicas e de associações médicas e outros setores que querem manter o poder e o controle sobre o corpo e sobre a mente humana. Querem regular a população: de quem é eficaz para o trabalho e para o consumo, de quem tem que estar fora de circulação. É um projeto higienista que nomeia o que é normal e o que é anormal de forma arbitrária.

Por isso é um dever lutar incessantemente pelo fortalecimento e ampliação da Rede Pública de Atenção Psicossocial. Essa rede possui serviços de base comunitária e de portas abertas, com uma equipe multiprofissional (psicólogo, psiquiatra, assistente social, enfermagem, terapia ocupacional e etc), numa relação horizontalizada, sem hierarquia direta de poder.

Toda a equipe tem voz e poder de participação. Está dentro dos princípios do SUS e aqui destaco a equidade. São serviços que fazem matriciamento e articulam uma rede com outros serviços interssetoriais, que dialoga com seu território, que fazem atividades para além dos muros da instituição. Bem como promovem assembleias com pacientes, usuários e familiares e servidores. O objetivo é o protagonismo do paciente/usuário, passando também pelo cuidado com o cuidador. Promovendo assim a autonomia e emancipação da pessoa no cuidado de si junto a sua coletividade.

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