Retrocessos na política de saúde mental fortalecem ‘manicômios modernos’

Após décadas de luta por uma política pública antimanicomial, o Pará ainda apresenta uma realidade distante do ideal: a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) do estado não contempla a realidade amazônica, os aparelhos públicos estão sucateados, e faltam remédios e profissionais. Ao mesmo tempo, cresce o número de comunidades terapêuticas, consideradas novas formas de manicômio, que contam com investimentos públicos dos governos e com recursos de emendas parlamentares, principalmente da bancada evangélica.

“A lei 10.216, de 2001, representou um marco na luta pelo fim dos manicômios no Brasil. Ela criou os Centros de Atenção Psicossocial, os Caps, e outros serviços da Rede de Atenção Psicossocial, a Raps. Mas, mesmo em Belém, que é a Metrópole da Amazônia, essa rede não funciona como deveria. Imagina em cidades mais distantes dos grandes centros”, questiona a assistente social Cláudia Tereza, que atua nessa política há 30 anos.

Cláudia avalia que a lei foi resultado da luta de décadas do movimento antimanicomial, que celebra neste domingo (18) o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Ela representa a conquista de uma reforma psiquiátrica de fato, que prioriza o tratamento em liberdade de pessoas em situação de sofrimentos mentais, junto da família e com acolhimento da sociedade. Esse tipo de cuidado contraria a lógica do confinamento e de tratamentos que cientificamente são considerados ineficazes, como choques elétricos e reclusão compulsória. Essas práticas foram usadas nos manicômios, que eram aparelhos públicos, e seguem sendo usadas em comunidades terapêuticas, convertidas em fonte de renda para essas instituições privadas.

“Como toda política, há avanços e retrocessos. A partir de 2016, a gente começa a viver o retrocesso daquilo que a gente foi construindo ao longo do tempo. Esse Caps, essa Rede de Atenção Psicossocial, ela perde um pouco do seu objetivo. E aí a gente tem um agravamento com a pandemia”, lamenta Cláudia. Para ela, o aumento exponencial da demanda afetou consideravelmente a rede pública, e ainda piorou o atendimento, que já era precário, para clientes de planos de saúde. Consequentemente, o lucro de quem presta esse atendimento a quem pode pagar aumentou.

Saúde mental na Amazônia

Além disso, reflete Cláudia, a Raps ainda não atende a realidade amazônica. Pela regulamentação atual, municípios com menos de 20 mil habitantes não podem ter Caps. Nesses casos, os moradores precisam procurar as Unidades Básicas de Saúde locais, que têm suporte limitado para saúde mental, ou se deslocarem para Caps de cidades maiores – o que, além de superlotar as demandas dos equipamentos existentes, também aumenta muito o tamanho do território atendido pela unidade. A situação dificulta o acesso a esses espaços para moradores de localidades mais distantes. O transporte dos pacientes também é complexo, dificuldade que faz parte da realidade amazônica. Em alguns casos, mesmo dentro de um mesmo município o deslocamento pode ser um entrave. Em cidades como Altamira, que tem baixa densidade populacional e grande extensão, uma pessoa pode demorar até cinco dias viajando de barco para chegar à sede.

“A gente tem pessoas que vêm de regiões longínquas, com viagens longas de barco para conseguir um atendimento em psiquiatria. E ele só vai conseguir esse atendimento dentro de hospital, porque os Caps não estão dando conta. O Caps, que foi criado para sanar crises, hoje não sana. Não sana crises porque não tem um especialista, porque hoje nem farmácia têm”, denuncia.

O Brasil de Fato esteve no Caps Amazônia, em 7 de maio, e encontrou pacientes voltando para casa sem atendimento, pois o médico não pôde prestar o atendimento pré-agendado. A reportagem testemunhou assistentes sociais tentando conseguir receituários e remarcar as consultas. Foi o caso da aposentada Maria Ribeiro, que viajou cerca de cinco horas de Magalhães Barata, município do Nordeste Paraense, para levar o filho à unidade, em busca da continuidade do tratamento para depressão e ansiedade.

O Caps Amazônia não conta com psiquiatra, e consultas com psicólogos e médicos generalistas podem ter intervalo de até 4 meses. Durante a visita da reportagem, nem mesmo a clínica geral estava disponível. “Aí a gente vem gastando dinheiro de ônibus. Eu fui até a Secretaria Municipal de Saúde pedir o carro que desse para a gente se locomover, e eles me enganaram. O secretário de saúde falou que ia mandar o carro pegar a gente, quando foi na hora, o carro não foi, e a gente vem pulando, gastando, né?”, contesta dona Maria.

A expressão “pulando” é usada por Maria para explicar como se dá o transporte nessas condições. Nem sempre é possível fazer o deslocamento direto de Magalhães Barata até o município a Belém. Conforme a urgência, os passageiros precisam pegar até três conduções para chegar ao destino, ou seja, ir “pulando” entre veículos. A viagem, que já seria cansativa se feita de forma direta, fica ainda mais desgastante.

Segundo informações de funcionários do SUS, atualmente só um dos 11 Caps de Belém conta com psiquiatria. Para conseguir atendimentos desses profissionais, os pacientes buscam, então, os hospitais. Em Ananindeua, segundo maior município paraense, só há um psiquiatra em toda a rede pública municipal.

Maria enfrenta ainda outro problema, que também é grave: as farmácias foram retiradas dos Caps. Para conseguir remédios na farmácia da Unidade Básica de Saúde em Magalhães Barata, ela precisou retornar outro dia para levar uma receita, que nem sempre é suficiente para a demanda do filho. Se ele precisa fazer uso de doses maiores, ela precisa comprar, bem como acontece com toda a medicação que não está disponível na rede.

“É uma chatice, que não tem que tomar mais de um comprimido, tem que tomar só um comprimido pra dormir. Mas às vezes ele não dorme, tem que tomar mais de um. Aí eu tenho que comprar, porque é dia 22 que eu tenho que pegar, aí se eu for pegar antes, mesmo com a receita, eles não dão. Aí é complicado mesmo. Mesmo com essa dificuldade, não todos os remédios necessários que estão disponíveis na rede pública. Dependendo da necessidade do paciente, independente da situação financeira da família envolvida, a única solução é comprar”, relata.

Dificuldades até para quem tem plano de saúde

Clientes de plano de saúde também têm dificuldade de consegui atendimento em psicoterapia e psiquiatria. “Eu consigo psicólogo, no máximo, duas vezes por mês, e isso se eu insistir muito, que me atendem só por 40 minutos. Normalmente, só é uma vez por mês. E os psiquiatras da rede desse plano, têm geralmente tantos pacientes para atender no mesmo dia, que só conversam comigo por uns 10 minutos, e isso se eu fizer muitas perguntas. Pra conseguir agendar, demora até três meses”, reclama a professora Sueli Rodrigues, cliente de um plano de saúde.

Atualmente, em Belém, uma consulta particular com médico especialista em psiquiatria pode custar até R$ 750 reais. Para ser atendido com sessões semanais de terapia ou de análise, a média é um investimento de R$ 600 mensais.

Comunidade terapêutica, durante inspeção do MPF. Foto: André Borges / Agência Brasília

Contrarreforma psiquiátrica

Apesar dos problemas apresentados no cuidado à saúde mental atualmente, o cenário anterior era muito pior. “O pior dos Caps é infinitamente melhor que um manicômio, que as comunidades terapêuticas ou qualquer outro dispositivo manicomial. Toda a nossa luta é no sentido de ampliar essa rede, qualificar esse serviço, fazer com que ele se torne realmente um serviço substitutivo ao manicômio, que não é necessário no caso das pessoas em sofrimento mental.”, enfatiza Rosângela Cecim, militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila).

Vítima dos antigos manicômios, Rosângela chegou a coordenar a Política Municipal de Atendimento à Saúde Mental, na primeira gestão do ex-prefeito Edmilson Rodrigues, à época no PT, entre o final da década de 90 e início dos anos 2000. Ela ressalta que o sucateamento dos Caps e da Raps é problema de gestão e de vontade política.

“Houve muita desconfiança dos vizinhos, na época, porque a lógica que foi construída na sociedade é que essas pessoas são perigosas. Que a loucura é perigosa. E nós conseguimos, ao longo dos anos, inclusive convidar essa vizinhança para as nossas atividades, e demonstrar que o atendimento pode e deve ser humanizado, e em liberdade”, conta.

“Até hoje Belém tem os mesmos Caps que foram criados na minha gestão, há mais de 20 anos. É preciso ter muito cuidado na hora de fazer a crítica. Ela deve ser feita à gestão”, enfatiza. Quando conversou com o Brasil de Fato, ela estava em Brasília, para lançar o movimento e o dossiê Perigoso é o manicômio, o que resolve é o cuidado em liberdade.

O objetivo do documento e do movimento é dialogar com senadoras e senadores para impedir que o projeto de lei (PL) 1.637, de 2019, seja aprovado no Senado, após ter passado no final de 2024 na Câmara dos Deputados. “É um projeto de lei extremamente conservador, que fortalece a lógica manicomial”, segundo Pedro Junior, também militante da Renila. O texto aumenta de 3 para 20 anos o tempo máximo de internação em hospitais de custódia – os chamados manicômios judiciários. Segundo o dossiê, esses hospitais são os mais precários e violadores de direitos. E, de acordo com estudo gerado pela vistoria feita pelo Conselho Federal de Psicologia e MPT, em 2015, apenas 11% das internações nesses locais envolvem crimes graves.

O desafio é contrapor as bancadas da bala, da bíblia e outras alas conservadoras para não apenas barrar a lei, como também pedir mais investimentos para a Raps e o fim imediato dos investimentos públicos em comunidades terapêuticas. Tanto o dossiê da Renila como estudos do Ministério Público Federal (MPF) e do Conselho Federal de Psicologia (CFP)

atestam que esses espaços violam direitos, praticam métodos ineficientes, muitas vezes violentos, e simbolizam a contrarreforma psiquiátrica e a volta dos manicômios.

Contudo, como as alas conservadoras têm grande influência nesta pauta. Foi na gestão de Dilma Roussef, em 2011, que as comunidades terpêuticas começaram a receber financiamento público, por meio da portaria 3.088. Desde então, especialmente nos governos Temer e Bolsonaro, esse investimento deixou de ir para a Raps para ser repassado às CTs. A Lei Complementar 187, de 2021, que regulamenta o repasse desses recursos, foi mais um retrocesso, de acordo com o movimento antimanicomial. Uma vistoria realizada pelo MPF em parceria com os ministérios públicos estaduais em 50 desses centros nas cinco regiões brasileiras constatou irregularidades como trabalhos forçados e profissionais contratados irregularmente.

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