
*Artigo escrito por Carlos Frederico Bastos Pereira, advogado, professor de Direito Processual Civil da FDV e coordenador do Departamento de Direito Processual da ESA/OAB-ES.
Todo direito carrega consigo uma dualidade: pode ser exercido de forma legítima, mas também pode ser distorcido e exercido de maneira abusiva.
O acesso à Justiça é um direito que não foge a essa lógica.
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Acesso à Justiça feito de forma massiva
Embora seja uma garantia fundamental prevista na Constituição, há situações em que o sistema judicial é acionado de forma massiva por meio de dezenas, centenas e até milhares de ações repetitivas, sustentadas por petições genéricas, muitas vezes acompanhadas de documentos falsificados, tudo com o objetivo de obter vantagens indevidas.
Esse fenômeno, conhecido como litigância abusiva ou predatória, tem se intensificado nos últimos anos, contribuindo para a sobrecarga do Judiciário.
Atento a essa realidade, os tribunais brasileiros têm demonstrado grande preocupação, adotando medidas de prevenção e combate à litigância abusiva.
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao reconhecer que o ajuizamento de ações idênticas em diversos locais diferentes pode configurar assédio judicial contra jornalistas, deu um recado claro: a Justiça não pode ser utilizada para ameaçar a liberdade de expressão.
Providências em caso de suspeita de fraude
Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vêm recomendando que os magistrados adotem providências em casos com suspeita de fraude, como a exigência de autenticação e atualização dos documentos juntados ao processo, tanto dos litigantes, quanto de seus advogados.
São avanços importantes, que demonstram a preocupação e o compromisso do Judiciário em preservar o acesso legítimo à Justiça, evitando distorções que transformem esse direito em instrumento de intimidação, pressão econômica ou obtenção de lucro desleal.
É fundamental ter cautela
No entanto, é fundamental ter cautela para que, sob o pretexto de combater abusos, novos abusos não sejam cometidos.
O combate à litigância abusiva não pode se transformar em um obstáculo ao acesso à Justiça.
Há uma linha tênue, e muitas vezes de difícil identificação, entre coibir o abuso do direito de ingressar com uma demanda perante o Poder Judiciário e restringir o direito legítimo de quem busca reparação à lesão dos seus direitos. E essa linha, quando ultrapassada, compromete o próprio Estado Democrático de Direito.
Esse cuidado é ainda mais importante em um país dimensão continental como o Brasil, onde parcela considerável da população carece de informação adequada sobre seus direitos e sobre os serviços judiciários disponíveis.
A verdade é que, em muitas situações, ações judiciais semelhantes decorrem de violações sistemáticas de direitos.
Não é coincidência que consumidores e contribuintes acionem em massa planos de saúde, instituições financeiras, companhias aéreas e o próprio Poder Público.
Essas empresas e o Estado, muitas vezes, repetem condutas lesivas, confiando na morosidade da Justiça e na resignação do cidadão comum.
Nesses casos, não se pode exigir um comportamento diferente do cidadão senão exercer o seu legítimo direito de buscar a proteção judicial de seus direitos.
Grave é quando ocorre criminalização da advocacia
Mais grave é quando, sob o pretexto de se combater a litigância abusiva, ocorre verdadeira criminalização da advocacia cuja atuação visa a garantir os direitos de seus clientes.
Supor uma má-fé automática do advogado por ingressar com diversas ações judiciais em casos repetitivos, insinuando fraude, é inverter a lógica da Justiça cujas portas devem estar abertas aos cidadãos. E o advogado é a voz do cidadão em juízo.

É legítimo e compreensível que o Poder Judiciário atue de forma vigilante para conter práticas abusivas no acesso à justiça, mas, como tudo na vida, é o desafio é ter equilíbrio e prudência para separar o joio do trigo.
Parafraseando Aristóteles, a virtude reside no justo-meio; o ponto de equilíbrio entre o excesso e a omissão.