Ele lutou por moradia popular na Grande SP, e agora pode perder a própria casa

Na madrugada de 19 para o 20 de julho de 2003, o Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST) fez uma ocupação na então conhecida como “área da Volks”, um terreno de 170 mil m² em São Bernardo do Campo (SP), de propriedade da montadora. À época, o local estava vazio. A ocupação tinha como objetivo pressionar a prefeitura da cidade a elaborar políticas públicas de moradia.

No primeiro dia de ocupação, a estimativa do movimento era de que 400 famílias estavam no local. Com o passar dos dias, o número chegou a 4 mil famílias, ou cerca de 10 mil pessoas. A ocupação foi batizada com o nome de Santo Dias, um metalúrgico assassinado pela Ditadura Militar durante uma greve em 1979.

O movimento foi temporário. A Volkswagen conseguiu a reintegração de posse e as famílias deixaram o local em 8 de agosto, apenas 19 dias depois, sem que houvesse um encaminhamento dos ocupantes para programas habitacionais.

Se a ocupação foi breve, as consequências jurídicas para dois personagens dessa história se mantém até hoje. Aldo Santos, professor e à época vereador de São Bernardo, e Camila Alves, uma das lideranças do MTST à época, foram processados e condenados ao pagamento de multas, em um processo que correu em segredo de Justiça e que até hoje não pode ser acessado de maneira pública. 

A multa cobrada no processo original era de 10 vezes o salário de vereador de Aldo e, para Camila, a quantia de R$ 5 mil. A decisão final de Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), que confirmou a condenação, saiu em 2018. A multa a Aldo foi corrigida e, à época, foi calculada em cerca de R$ 600 mil. Atualmente, seu débito está em pouco mais de R$ 1 milhão. A multa de Camila ficou em cerca de R$ 87 mil em valores atuais. Os valores são devidos ao Fundo de Reparação de Direitos Difusos de São Paulo.

Santos foi acusado, por iniciativa do Ministério Público, de improbidade administrativa, por usar um veículo da Câmara Municipal – de uso dos vereadores – para levar pessoas para a ocupação. Alves foi apontada com uma das lideranças da ocupação, junto com outras duas pessoas, cujos nomes foram retirados da ação ao longo do andamento do processo.

Aldo afirma que usou, de fato, o veículo da Câmara para transportar pessoas da ocupação, mas não para inflar seus números.

“Esse foi meu crime, né? Porque as pessoas não tinha apoio do poder público, cortaram a água, não tinha banheiro e era ocupação que tinha em torno de 10 mil pessoas, uma multidão. E algumas pessoas numa farmácia interna improvisada estavam com febre, com tosse, crianças com nariz escorrendo. Eu autorizei a Kombi que estava à disposição do vereador a adentrar o recinto e levar as pessoas para serem atendidas no pronto-socorro da cidade. Algumas pessoas do PS foram para a casa de familiares e alguns até retornaram para a casa de onde tinham vindo.”

Aldo discursa em ocupação da Frente Povo sem Medo em São Bernardo do Campo, em março de 2018 – Arquivo Pessoal

“No outro dia”, relata, “a imprensa local fez um estardalhaço dizendo que eu estava utilizando o carro oficial para ajudar na ocupação. Na verdade, não foi isso que aconteceu. E por conta disso, a minha condenação foi por improbidade administrativa.”

“Não causei nenhum dano ao patrimônio público e a Kombi estava à disposição do vereador, assim como cada vereador tinha um carro oficial à sua disposição”, defende-se.

Dívida impagável

Já Camila Alves foi acusada de liderar o MTST no âmbito da ocupação. O movimento foi acusado de parcelamento irregular do solo e perturbação do Estado Democrático de Direito. Agora formada em Direito, Camila afirma que seu nome sequer deveria constar no processo.

“O MTST não tem CNPJ, não pode ser processado, então eles pegaram aleatoriamente três pessoas do movimento para colocar no processo”, explica. Na primeira instância, o juiz entendeu que uma ação coletiva – a ocupação – não pode ter condutas individualizadas e inocentou os três. Na segunda instância, no entanto, o nome de Camila, e apenas o dela, voltou ao processo.

Sobre a acusação de parcelamento irregular do solo, Camila pensa que não há qualquer fundamento. “Era uma ocupação com barracos, lonas. Não havia construções”, relata. Já em relação à acusação de perturbar o Estado Democrático de Direito, ela é ainda mais enfática: “Era pressão política para que as pessoas entrassem em programas de moradia. Não ter onde morar é que é perturbação da ordem”.

No âmbito administrativo, Aldo Santos foi considerado inocente pelos seus pares. A investigação que correu na Câmara Municipal não encontrou qualquer irregularidade na conduta do então vereador. Na primeira instância, ele também foi absolvido. Mas o Ministério Público apelou para a segunda instância – no caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo – e ambos foram condenados.

O processo se desenrolou ao longo de 15 anos, até chegar ao STF. Lá, tanto Aldo como Camila foram condenados ao pagamento das multas. Aldo teve seus direitos civis e políticos cassados por três anos. Camila perdeu os direitos civis pelo mesmo tempo.

A multa infligida a Aldo sempre foi impagável. “Tenho como rendimento minha aposentadoria como professor. Além de injusto, é impossível pagar esse valor”, afirmou.

Moradia em risco

A Justiça chegou a confiscar, por três vezes, os valores nas contas de ambos para garantir o cumprimento da sentença. Como são rendimentos que provêm de salário e de aposentadoria, não podem ser confiscados. Mas o pedido para reaver os valores foi, em todas as vezes, lento. Em maio de 2024, por exemplo, aconteceu o último desses bloqueios, que foi revertido apenas em janeiro deste ano.

Também em janeiro de 2025, Aldo foi surpreendido com a chegada de um oficial de Justiça em sua casa. Ele foi entregar o aviso de penhora da sua casa – seu único imóvel, usado para moradia – e do seu carro, um Celta 2003. A execução da penhora representaria, portanto, a supressão do direito de Aldo à moradia, pelo qual lutou a vida toda.

Para Aldo, não restam dúvidas de que todo o processo pelo qual está passando é político. “O único objetivo desse processo é amedrontar quem faz luta social”, afirma. Ele lembra que seu envolvimento com a causa dos sem-teto em São Bernardo do Campo não começou com aquela ocupação. 

O ex-vereador relata que houve um discurso seu no plenário da Câmara que chamou atenção à época. “Um mês antes da ocupação mais ou menos, por volta do dia 18 de junho, uma comissão de moradores de rua esteve na Câmara Municipal. Eles estavam reclamando, dizendo que foram espancados pela GCM [Guarda Civil Metropolitana] de São Bernardo do Campo, e ia ter um feriado prolongado. Eles estavam preocupados porque ele não tinha nenhum banheiro público para poder fazer minimamente a higiene, desesperados, e alguns até machucados por conta do espancamento da GCM”, conta.

“Eu usei a tribuna, primeiro me solidarizando com eles, depois disse que eles deveriam também tentar organizar a vida deles, porque aquilo não era vida, aquela condição não era uma vida digna para os seres humanos. E disse para eles que eles deveriam se organizar, considerando que a cidade é uma cidade rica, que tem muitos imóveis, muitos terrenos e que a prefeitura deveria criar um banco de terra para poder atingir ou responder a essas demandas de natureza social, e não deixar as terras públicas para especulação imobiliária“, relata.

Aldo acredita que foi deste discurso que surgiu a sua presumida ligação com a ocupação. “Um mês depois teve ocupação, e pegaram as notas taquigráficas da minha fala e eu me lembro muito bem na [rádio] CBN o ex-governador [Geraldo] Alckmin [hoje vice-presidente] dizendo: ‘Olha, essa é a ocupação política, tem o vereador que tá estimulando o povo, falou isso na Câmara Municipal e o povo se organizou a partir daí’”, lembra.

“Eu diria que a ocupação foi de responsabilidade do MTST, mas de fato eu fiz esse discurso na Câmara Municipal”, conta.

Lawfare contra quem luta

O caso de Aldo e Camila gerou até uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), organizada pelo deputado estadual Carlos Gianazzi (Psol). Ocorrida em 11 de março deste ano, o encontro teve como tônica a classificação da perseguição judicial contra os militantes de moradia como lawfare.

“Esse ataque à Camila e ao Aldo significa um ataque a todos os lutadores e movimentos sociais, e nós não podemos permitir que isso aconteça. Essa audiência pública tem como foco central repudiar todo esse processo de lawfare, de perseguição jurídica contra duas pessoas que lutaram e lutam até hoje, sobretudo na área da moradia popular”, disse Gianazzi na ocasião.

Mesmo hoje, após as consequências jurídicas que vieram de sua atuação, Aldo mantém seu posicionamento. “Acho que tem que ter isso mesmo, estoque de terra ou um banco de terra para que as pessoas possam de fato resolver um problema humano muito sério que é o direito de voltar a noite para um lar, para uma casa para poder dignamente cuidar da família e no outro dia voltar para o seu trabalho”, conclui.

A defesa de Aldo e de Camila segue buscando recursos para anular a condenação. Procurado pela reportagem, o Ministério Público de São Paulo afirmou que “trata-se de execução de sentença com transito em julgado, no qual o promotor de justiça atua em razão de seu dever funcional, não podendo abrir mão da execução da multa”.

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