‘A gente só é ouvido quando fecha a linha do trem’: governo federal coleta relatos de violência na favela do Moinho

Pela primeira vez, representantes do governo federal se reuniram com parlamentares e moradores da favela do Moinho, na região central da de São Paulo (SP). O encontro ocorreu nesta quinta-feira (15), para ouvir sobre o processo de remoção realizado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB).

Participaram representantes dos ministérios dos Direitos Humanos e Cidadania, da Justiça e Segurança Pública, das Cidades, da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos e da Secretaria-Geral da Presidência. Era esperado que os próprios ministros fossem até a favela do Moinho, mas as pastas enviaram outros representantes, incluindo equipes técnicas. O objetivo é colher relatos dos moradores sobre o processo de remoção das famílias para subsidiar ações do governo federal.

Kelli Mafort, secretária-executiva da Secretaria-Geral da Presidência da República, afirmou que o processo de retirada das famílias deve envolver todos os entes federados. “Estamos aqui enquanto ente federal cumprindo a nossa parte. Esperamos que os outros entes federados cumpram as garantias de direitos, entre eles o de moradia”, disse. “A gente quer qualificar esse relato e obviamente que isso vai se transformar num documento”.

Os moradores relataram um cenário de violência, incluindo tiros de bala de borracha, bombas de efeito moral e até revistas em mochilas de crianças, e de remoções forçadas.

Renacir Marques afirmou que foi processado após ser acusado de agredir um policial. “Mas tem foto mostrando que eu já estava detido. Como eu ia jogar pedra na polícia? Eu estou sendo processado por algo que não fiz. Eu não posso trabalhar, porque a polícia militar está aí e eu estou com medo. Eu sou catador de materiais recicláveis. Fiquei uma noite preso. Estou aqui porque não posso perder a minha família. Eu vim morar aqui em 87, cresci aqui”, disse o morador aos representantes do governo federal.

“Eu peço ajuda dos governantes, porque não é possível que isso aconteça com um trabalhador. O juiz me liberou numa condicional para eu não participar de protesto. Se acontecer alguma coisa comigo, o governo do estado vai ter participação nisso. Não é possível que a gente esteja no centro da cidade mais rica do Brasil e acontecer isso. Eu construí isso aqui, eu trabalhei. Chegava à noite e ia sentar tijolo para construir minha casa. Eu gastei minha saúde, porque imagina carregar uma carroça com 300 quilos. Se acontecer alguma coisa comigo, foram eles que fizeram”, disse.

Carlos Daniel, que levou um tiro de bala de borracha na cabeça durante operação da PM na terça-feira (13), falou sobre a vinda de sua família para a favela do Moinho há cerca de 30 anos.

“Foi maior luta. São 35 anos de luta. Nós carregávamos água em balde. Minha mãe sofreu muito aqui. A escravidão acabou? Porque o negro favelado continua sofrendo. Nós pedimos o apoio de todos vocês. A vocês que têm estudo eu peço ajuda para nós. Vão continuar com essa opressão até que vocês, que têm estudo, façam algo por nós”, relatou.

“Nós vencemos a miséria para estar hoje aqui. Até quando moradores vão ser alvejados e crianças vão ficar desmaiando? É o preto favelado todo dia sendo alvejado. Eu não consigo ver essas pessoas que alvejam pessoas como seres humanos. São bandidos que vieram atirar em criança. São esses caras que estão fardados que são bandidos. Nós é o Centro. Somos nós que construímos tudo aqui. É direito nosso viver aqui”, relatou.

Cíntia Bonfim da Silva, moradora da favela e dona de uma padaria local, relata que o filho foi agredido pela Policia Militar, também na terça-feira (13). “Meu filho estava indo trabalhar. Ele tentando passar para chegar no trabalho. O policial jogou o escudo nele e atirou nas costas dele. Eu estou na base do calmante”, relatou.

“O governador e o prefeito estão passando em cima de todo mundo, criminalizando a favela. Eu sou padeira. Eu passo a madrugada fazendo pão. Eu como mãe estou acabada. O mesmo homem que atirou no meu filho, riu na cara do meu filho no outro dia. A cara do meu filho está marcada. O Choque entrou ontem invadindo as casas e a gente fica calado. Mas a gente tem muita força. Eu tomei quatro calmantes sem receita. Sabe o que é ver seu filho tomar um tiro nas costas indo trabalhar e sendo chamado de vagabundo?”, relatou a moradora.

“A gente só é ouvido quando fecha a linha do trem, porque senão ninguém ouve, ninguém está nem aí. Eu não sei como o governador passa por cima do presidente”, disse Silva ao se referir à Secretaria de Patrimônio da União (SPU), que anunciou, via notificação extrajudicial, o fim da cessão do terreno onde está a comunidade para o governo Tarcisio de Freitas (Republicanos), já que o terreno é da União.

O anúncio foi feito na terça-feira (13). Ainda assim, no dia seguinte, a favela do Moinho amanheceu novamente com um forte aparato policial. Algumas crianças foram impedidas de ir à escola, moradores foram alvejados com tiros de bala de borracha e casas foram demolidas com a ajuda de funcionários da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU).

Esta quinta-feira (15) foi o quarto dia seguido de demolições de casas na favela do Moinho, mas a presença da polícia se intensificou desde 18 de abril, na Sexta-feira Santa.

O governo de São Paulo tem oferecido aos moradores três cartas de crédito, de R$ 250 mil, R$ 230 mil e R$ 200 mil, com as quais as famílias removidas deverão se comprometer com financiamentos de até 30 anos.

Hoje, existem apenas 110 unidades habitacionais prontas para receberem as quase 800 famílias do Moinho. Por isso, o governo oferece um auxílio-aluguel de um ano, no valor de R$ 800, para que os moradores da comunidade se mudem para casas na região. Os aluguéis na região, no entanto, superam o valor concedido por Tarcísio.

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