Segurança na internet, importância da regulamentação das plataformas e riscos à infância e adolescência foram temas tratados no debate “Violência Digital e a Proteção de Crianças e Adolescentes“, ralizado nesta segunda-feira (12), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), em porto Alegre (RS). Proposto pela deputada federal Maria do Rosário (PT) em parceria com a Faculdade de Direito Ufrgs, o evento contou com a presença da ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo.
Além da presença da ministra e de Rosário, a mesa de abertura contou com a participação da reitora da Ufgrs, Márcia Barbosa, e a diretora da Faculdade de Direito, Ana Paula Costa Mota. As duas mesas seguintes tiveram falas de pesquisadores(as) e profissionais que atuam no sistema de proteção e são referência sobre o assunto no estado, e que analisam e atuam no impacto das redes digitais na vida de crianças e adolescentes.
“Existem questões hoje que não estavam colocadas há pouco tempo atrás, que foram se colocando de uma forma tal que extrapolou a nossa capacidade na esfera pública, nas instituições, de darmos conta da avalanche de questões que se repetem no mundo digital”, disse Rosário. Segundo ela, ainda não se sabe como lidar “com o conjunto de manifestações, discursos de ódio e de engajamento para a violência existente nas redes sociais”.

Conforme ressaltou a parlamentar, a violência física e sexual que se perpetua contra uma criança está conectada com “tudo que a rede está despejando”, em especial com os desafios online.“Foram 56 crianças, que segundo o Ministério da Justiça, nos últimos anos, vieram a óbito por causa dos desafios. Quem está atrás do computador? Quem é esse sujeito oculto que se apresenta como outra criança e que, na verdade, utiliza todas as formas mais perversas de coação para violência sexual, para o abuso, para a perversidade? Que leva a criança a automutilação e até ao engajamento em ações de terror, em ações de violência?”, questionou.
Rosário informou que foram obtidas as assinaturas para a implementação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), na Câmara dos Deputados, para investigar crimes como esse e outros praticados nas redes e plataformas digitais. “Dentro da Câmara dos Deputados, nós seguiremos com este debate, se não com uma CPI, com um grupo de trabalho sobre a legislação no que diz respeito ao Código Penal, as responsabilidades de plataformas e de todo o sistema digital, a questão internacional que demanda tratados também na área de direitos humanos.”
Para além do local
Para a ministra Macaé Evaristo, falar do direito à proteção integral às infâncias é compreender que o ambiente digital não se constrói no ambiente local. “O ambiente digital nos desafia para além do agir local, a pensar que nós precisamos desses espaços de diálogo multilateral. E pensar como que, na defesa dos interesses das crianças brasileiras, temos que debater e regular muitas vezes empresas e plataformas transnacionais que operam por trás dessas plataformas, e que usam o bullying, a violência, o racismo e a misoginia como mecanismo de auferir lucro. Nós não podemos perder isso de vista.”
Neste contexto, ressaltou Evaristo, o debate de regulação das plataformas digitais está em disputa. “Não é ingenuamente que essas plataformas não querem garantir a responsabilização sobre quem está produzindo discurso de ódio, quem está operando redes de pedofilia e quem está usando uma cultura de ódio para monetizar na internet. É preciso construir mecanismos de proteção online,” defendeu. A ministra também abordou também os direitos de crianças e adolescentes nos ambientes digitais.

A diretora da Faculdade de Direito pontuou que a novidade é que o ambiente da sociedade se tornou virtual. “As gerações que nos seguem dominam uma outra linguagem que nós adultos não dominamos mais. Então, não só nós precisamos entender o mundo da infância para poder lidar com esses riscos cibernéticos, como também precisamos entender esse ambiente. Os desafios são realmente muito grandes, que não envolvem só o Estado, mas envolve a sociedade em geral”, afirmou Mota.
Por sua vez a reitora da Ufrgs apontou que quando a internet foi criada, no final dos anos 80, não se tinha ideia dos problemas que ela poderia gerar, e portanto não se colocou nenhuma trava. “Como não temos essas travas, o direito precisa constituir esse corpo que protege em geral a sociedade, mas muito particularmente as crianças. Precisamos trabalhar em conjunto, abrir o dialogo em todas as áreas do conhecimento. Precisamos impedir os criminosos e criminosas de utilizarem a maravilha da tecnologia, da ciência, para destruir as nossas vidas.”
Impacto do uso das tecnologias
O psicólogo Daniel Spritzer iniciou sua exposição citando dados da TIC Kids Online Brasil 2024, e dados sobre o uso da internet e posse de telefone celular da população de 0 a oito anos. De acordo com ele, 82% das crianças de seis a oito anos são considerados usuários da internet e 44% dos bebês de 0 a dois anos já usaram internet nos últimos três anos.
Spritzer também abordou os problemas que o uso excessivo e problemático de tecnologia pode trazer para crianças e adolescentes: transtorno mental, e prejuízos escolares, sociais, familiar e para a saúde como um todo. “Os adolescentes são mais afetados, as crianças ainda têm uma proteção um pouco maior. Estamos permitindo que tudo seja liberado e disponibilizado para crianças e adolescentes sem muita regulamentação. Tem pouca gente falando e pensando sobre aquilo que realmente importa, a segurança das crianças e adolescentes. Essa falta de regulamentação acaba estourando no lado mais fraco, nas famílias”, observou.
Especialista em saúde mental, Marluci Meinhart afirmou que o problema da violência contra a infância no Brasil é amplo e completo e por isso exige ser analisado e enfrentado na mesma complexidade e pluralidade. “Criamos equivocadamente no imaginário social que uma criança ou adolescente em casa, em frente uma tela, estaria mais seguro que na rua”. Também pontuou sobre os impactos do uso excessivo das telas e da inteligência artificial, como a perda de habilidades cognitivas e de criatividade, como também transtorno de ansiedade, tentativas de suicídio.
“Se temos uma sociedade violenta, preconceituosa, desiguale manipuladora, essa realidade se reproduz nas escolas e nas redes também. (…) Não podemos negar que as crianças e adolescentes encontram nas telas sentido de pertencimento, companhia, presença, diversão, ideias. Tudo que não temos conseguido dar enquanto adultos, cuidadores e responsáveis. E não existe um único culpado. E nem se trata de culpa, trata-se de um modo de vida, legitimado e reforçado cotidianamente pelas nossas rotinas”.
Apesar desse quadro, a especialista afirmou que há possibilidades de mudança, mas que ela só será possível se tiver oportunidade de políticas públicas que garantam dignidade a todas as comunidades, com possibilidades de presença, investimento em uma educação que fale sobre violência, sobre diversidade, saúde mental. “Ações de prevenção precisam ser mais eficazes do que ações de tratamento”, concluiu.
Redes como espelho
Em sua intervenção o Juiz de Direito Charles Maciel Bittencourt, da Justiça Instantânea (JIN) da Infância e Juventude da Comarca de Porto Alegre, pontuou sobre as mudanças do sentido de segurança trazida pelas redes sociais. “Aquela praça imaginaria como a Redenção, Parcão, Marinha, hoje em dia é muito mais segura que a praça virtual do quarto de casa”.
De acordo com ele os atos infracionais, em especial dos adolescente e até mesmo adultos, estão aumentando na ceará cibernética absurdamente, citando como exemplo, o aumento das ameaças a escolas. Segundo Bittencourt, em 2010 os cartórios registraram 19.710 casos de bullying ou cyberbullying, em todo o país, em 2023 foram 121.671. No RS, em 2024 foram em 2024 , 93 ocorrências de atos infracionais de bullying, sendo 29 em Porto Alegre.
Por fim ele destacou as legislações referentes a questão das redes sociais, como a Lei Carolina Dieckmann (Lei nº 12.737/2012), a Lei do Marco Civil da Internet (Lei 12.965 de 2014), a lei que criminaliza bullying e cyberbullying (Lei nº 14.811, de 12 de janeiro de 2024) entre outras. “O que que estou vivenciando de vitimas de bullying e cyberbullying nos últimos anos eu nunca tinha visto até 10 anos atrás. Estou a 27 anos na magistratura, e tenho esperança que a legislação vá nos auxiliar, mas temos que levar essa conversa também a nosso redor, temos que fazer esse enfrentamento”.

Para a professora de direito Vanessa Chiari Gonçalves, os adolescentes não são alienígenas e sim produtos da sociedade, mesmo quando interagem nas redes sociais. “Eles estão reproduzindo simplesmente nas suas relações o machismo que é estruturante, a misoginia”.
Coordenadora dos grupos de pesquisas do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal e Criminologia e Núcleo de Estudos de Gênero, Violência e Sexualidades, ela destacou que há algum tempo vem surgindo nas redes sociais movimentos masculinistas. Segundo a professora esse movimentos surgem em reação às conquistas do movimento feminista, reação à igualdade de direitos, às políticas afirmativas, seja de inclusão da população negra, seja de inclusão das mulheres.
“Eles (integrantes do movimento), partem da partem da crença do machismo que as mulheres são inferiores em tudo aos homens, mas eles se rebelam do empoderamento feminino produzido pelos movimentos feministas, e reagem a isso com ódio extremado. Esses movimentos exploram as redes sociais, capturam as subjetividades de todos, adultos e adolescentes. O problema é que os adolescentes não dispõem de musculatura emocional para reagir. Então, eles são vítimas muito mais fáceis desse tipo de movimento, que estabelece, inclusive, desafios e tudo mais”.
Conforme complementou, quando a rejeição afetiva se manifesta nas redes sociais a resposta precisa ser a altura, não às mulheres, mas a quem ele se dirige com respeito, que são os seus iguais, ao grupo de homens, ao grupo de meninos. “Não é nada mais nada menos do que a velha forma de lavar a honra com sangue, só que agora na dimensão das redes sociais”.
Legislar, cuidar e observar
Mediadora da última mesa, a vereadora da cidade de Taquara (RS), e coordenadora Observatório de Políticas Públicas para Crianças e Adolescentes, Mônica Facio (PT), comentou sobre o episódio envolvendo o município taquarense, em que um homem foi preso acusado de pedofilia. De acordo com a Polícia Civil, o homem teria praticado crimes ao longo dos últimos 16 anos, utilizando um perfil falso no Instagram.
Professora há mais de 20 anos, Facio é autora de projeto de combate ao bullying e cyberbullying e do programa Meninas Cidadãs. “Infelizmente nossas crianças e adolescentes mesmo quando só assistindo ações violentas e tóxicas, eles são vítimas. Nós temos a responsabilidade, não só de legislar, mas de denunciar, de cuidar e de observar”.
Procurador de Justiça e coordenador do Núcleo de Prevenção à Violência Extrema e do Projeto Sinais do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), Fábio Costa Pereira, abordou a radicalização nas redes envolvendo adolescentes. “Os nossos adolescentes são, de um lado, no primeiro momento, vítimas, se tornam vitimizadores, e n neste andar da carruagem, eles se tornam suicidas em potencial com misto de homicida”.
Segundo Pereira o termo que se usa hoje em dia, mais presentemente, para definir os “nossos” extremistas, são de niilistas extremistas violentos. “ São muitos rígidos em suas opiniões. Eles têm uma visão distorcida sobre a realidade. Por que eles sofreram muito. Sim, eles têm um sofrimento muito grande. Eles não se sentem a nada pertencentes. No mundo digital, eles encontram uma outra família. Eles vão encontrar pares como eles, que vão radicalizá-los, e eles conjuntamente vão se radicalizar. Isso é pior de tudo porque fica mais difícil trabalhar. E ai vem o isolamento”.
Ele pontuou também sobre o crescimento das mulheres como agentes do extremismo violento, com mesmo grau de perversidade dos adolescentes do sexo masculino, enquanto em anos anos anteriores elas eram mais vítimas ou serviam como iscas para engajar outras pessoas. Conforme pontuou o procurador, a violência extrema é a violência planejada com o objetivo de causar dano significativo à sociedade, não importa quem.
De acordo com o coordenador é fundamental conhecer o meio no qual este adolescente está inserido para conseguir atuar nesta prevenção. “Nós procuramos no passado respostas que nos não vamos encontrar. Procuramos soluções para problemas que não vamos entender”.
Pereira deu exemplos da atuação do Projeto Sinais, destacando as palestras de formação realizadas em mais de 30 cidades gaúchas e falou sobre a importância de todos os atores (como família e escola) estarem atentos ao comportamento destes adolescentes que podem ser vítimas potenciais da radicalização.
Por fim o Diretor Direitos na Rede e Educação Midiática na Presidência da República David Almansa as ações desenvolvidas pelo governo federal e mecanismos adotados, como o guia Crianças Adolescentes e telas, Guia sobre Usos de Dispositivos Digitais. E também pontuou ações desenvolvidas com diversas áreas como justiça, educação.
Conforme explicou Almansa o objetivo do departamento de Direitos na Rede e Educação Midiática é garantir que toda a legislação que protege mulheres, negros e negras, crianças, idosos, a população como um todo, no mundo não virtual, funcione também no mundo virtual. “Para isso é preciso criar dinâmicas para essa estrutura nova. E a parte da educação midiática é a nossa ferramenta de ataque, vamos dizer assim, para criar a médio e longo prazo cidadãos e cidadãs que façam o uso correto e assertivo das redes, dos meios digitais”
O diretor comentou que o Conselho Nacional de Educação aprovou esse ano as diretrizes para a educação digital e midiática. “Neste exato momento, todas as escolas do país têm que se debruçar em produzir um currículo de educação digital e midiática para, a partir de 2026, todas as escolas, tanto na educação, nos anos iniciais da educação básica quanto nos anos finais, trabalharem pelo tema da educação digital e midiática”.
Por fim, Almansa ressaltou que é preciso entender que estamos e uma disputa com um ator muito poderoso, as big techs. “Nós estamos nesse momento tendo um debate no Congresso Nacional, o Projeto de Lei 2630 (“PL das Fake News”), que trata da instituição de regramentos para a proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital e responsabilização dessas empresas. E nós precisamos fazer, enquanto sociedade, um balanço de uma discussão como essa que está acontecendo hoje (encontro), para tencionar o Congresso Nacional a fazer uma política de regulamentação”.
