Pepe Mujica e a leveza subversiva de um outro mundo possível


Por Ítalo Aquino*

Foi por volta de 2014, nos primeiros semestres da graduação em História na Universidade Estadual da Paraíba, que conheci a figura de José ‘Pepe’”’ Mujica. Em meio ao calor das aulas sobre regimes autoritários, revoluções populares e impasses do século XX, deparei-me com aquele homem de rosto enrugado, voz pausada, que passava serenidade. Mujica não me impressionou apenas por seu passado de militância, mas por sua maneira de habitar o mundo. Em uma época em que o consumo e o acúmulo são apresentados como sinônimos de sucesso, sua existência simples, ética e despretensiosa parecia — e ainda parece — um ato revolucionário.

Nascido em 20 de maio de 1935, em Montevidéu, no Uruguai, Mujica cresceu em meio a uma realidade rural e modesta. Ainda jovem, ingressou no movimento de esquerda Tupamaros, uma guerrilha urbana influenciada pela Revolução Cubana e pela luta armada contra a desigualdade crescente na América Latina. Nos anos 1960 e 70, o Uruguai, assim como boa parte do continente, mergulhava em uma espiral de autoritarismo e repressão. Mujica foi baleado em confrontos, preso quatro vezes e escapou da cadeia duas — até ser capturado em definitivo em 1972. Foi então que começou o período mais sombrio de sua trajetória: passou 14 anos preso, muitos deles em condições extremas de isolamento, sob constante risco de insanidade, fome e tortura psicológica.

Mujica sobreviveu à prisão sem perder a capacidade de sonhar. Com a redemocratização uruguaia na década de 1980, foi libertado com outros ex-militantes e entrou para a vida política institucional. Filiou-se à Frente Ampla, coligação de esquerda que se tornou protagonista no cenário político do país. Ao longo dos anos 1990 e 2000, foi deputado, senador e ministro da Agricultura. Em 2009, aos 74 anos, foi eleito presidente da República, exercendo o cargo entre 2010 e 2015.

Seu governo ficou conhecido por medidas de enorme alcance simbólico e político: a legalização da maconha, do casamento igualitário e da interrupção voluntária da gravidez. Mas o que mais fascinava — especialmente aos olhos de um jovem estudante como eu — era a coerência radical entre o discurso e a prática. Mujica continuava vivendo em sua chácara nos arredores de Montevidéu, dirigia seu Fusca azul e doava até 90% de seu salário. Dizia:

“Não sou pobre. Pobres são os que precisam de muito. Vivo com pouco para que outros possam viver.”

Ao romper com o modo de vida consumista que domina as democracias contemporâneas, Mujica oferecia uma crítica viva ao que o filósofo britânico Mark Fisher costumou chamar de realismo capitalista. Em sua obra homônima, Fisher afirma que a maior vitória do capitalismo foi tornar-se inevitável no imaginário popular: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.” Mujica subvertia essa lógica de dentro — não apenas por palavras, mas por ações. Como presidente, provou que é possível exercer o poder sem ser devorado por ele. Não se tratava de moralismo, mas de convicção política. Ele sabia que o consumo desenfreado, longe de emancipar, aprisiona.

Mas não confundamos simplicidade com ingenuidade. Mujica foi um pensador e político estratégico, profundamente comprometido com um projeto de transformação social — um socialismo democrático, enraizado na experiência latino-americana. Ao contrário de modelos autoritários que muitas vezes sequestraram o imaginário socialista, sua proposta passava pela radicalização da democracia, da participação popular e da ética pública. Em suas palavras:

“Se a cultura não mudar, nada muda. As mudanças estruturais não modificam a conduta civilizatória das pessoas. Não se pode construir a cultura solidária a partir de valores capitalistas.”

Essa postura ética e afetiva remete a um verso poderoso da música ‘Primavera’, de Don L: “Ai, que endurecer sem nunca perder a ternura.” Verso esse que, por sua vez, resgata a máxima de Che Guevara — “Hay que endurecerse sin perder la ternura jamás” — e que parece moldar a própria trajetória de Mujica. Foi essa ternura — presente no modo de falar, de governar e de viver — que o manteve humano mesmo após anos de solitária. Foi essa dureza — firme — que o manteve de pé diante da repressão e da dor.

Mujica faleceu no dia 13 de maio de 2025, aos 89 anos. Sua partida deixou um vazio simbólico, mas também renovou a importância de sua herança política, cultural e existencial. Para mim, professor de História no Nordeste brasileiro, sua trajetória continua sendo mais do que uma lição de conteúdo: ela é um farol. Em meio às dificuldades cotidianas do magistério, às desigualdades estruturais e à erosão da esperança, Mujica nos ensina que há dignidade na resistência, e que a utopia não se resume a uma miragem inalcançável — ela é método, horizonte e prática.

Falo aos meus estudantes sobre ele não como quem fala de um herói distante, mas como quem apresenta uma possibilidade real de outro mundo. Mujica nos permite imaginar a política com humanidade, o poder com humildade e a vida com mais essência do que aparência. E é nessa direção que seguimos, com ternura e firmeza, como na canção:

“Ai, que endurecer sem nunca perder a ternura.”

Talvez seja essa a maior herança de Mujica: a coragem de caminhar mesmo quando o caminho é estreito, e de sonhar mesmo quando tudo nos chama ao cinismo. Sua vida foi um lembrete permanente de que a História ainda pode ser escrita com afeto, justiça e liberdade.

*Ítalo Aquino é professor de história, doutorando na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Pesquisa as relações de trabalho no campo brasileiro, especialmente na Paraíba, no período de 1958-1964.

**A opinião contida neste texto não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.

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