O novo modelo de uso das câmeras corporais da Polícia Militar de São Paulo, que substitui a gravação ininterrupta por mecanismos automáticos de acionamento, pode representar um retrocesso e exige vigilância constante da sociedade civil. É o que aponta o especialista em segurança pública Felippe Angeli, coordenador de advocacy da plataforma Justa, em entrevista ao Conexão BdF, da Rádio Brasil de Fato.
A mudança foi homologada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no início de maio, em um acordo firmado entre o governo paulista, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP) e a organização Conecta Direitos Humanos. Na prática, o modelo que vinha sendo adotado desde 2020, com gravação contínua, será substituído por um sistema em que a ativação das câmeras se dá de forma automática em determinadas situações, como o início de uma operação ou o despacho de uma ocorrência, além da possibilidade de acionamento remoto em casos de falhas técnicas ou tentativa de bloqueio das imagens.
Angeli ressalta que a gravação ininterrupta é o padrão defendido por organizações da sociedade civil justamente por ser o formato que mais tem respaldo em evidências para prevenir abusos policiais. “Acredito que tenhamos retrocesso em relação ao modelo anterior, mas temos também outros mecanismos previstos de mitigação; agora é importante que saiam do papel. Vamos acompanhar se realmente vai melhorar a segurança pública e diminuir a letalidade policial, que é muito alta aqui no estado.”
Ele reconhece que o novo acordo prevê instrumentos de fiscalização que podem compensar, mas apenas se forem efetivamente implementados. “Em tese, a falta da gravação ininterrupta estaria coberta por essas novas possibilidades de acionamento remoto. Temos que ver se isso vai funcionar mesmo e se vai ter o efeito desejado, que é o mais importante”, afirma.
Resultado final não pode se alterar
A plataforma Justa participou da ação como amicus curiae (amigo da corte), junto à Defensoria e à Conecta Direitos Humanos, após as denúncias de abusos policiais durante a Operação Verão 2023-2024, no litoral paulista. O caso motivou a discussão no STF sobre a obrigatoriedade do uso de câmeras em situações com maior risco de confronto.
O acordo homologado determina que as câmeras sejam obrigatórias em operações com tropas especializadas, como a Rota, e em ações motivadas por mortes de policiais, contexto em que a letalidade costuma aumentar. Também está previsto o aumento no número de equipamentos e a elaboração de uma matriz de risco para orientar a alocação das câmeras nas regiões e batalhões com maior histórico de violência.
“Temos que ficar atentos para que novos casos de uso indevido, de violência policial, o descumprimento desse acordo, sejam denunciados, monitorados, e a partir daí, identificar melhorias”, alerta Felippe Angeli. Ele explica que o acordo tenta organizar protocolos para uso das câmeras, mas reforça que “não se pode ter — e isso é a decisão do ministro [do STF Luís Roberto] Barroso — operações policiais com alto risco de confronto, com tropas especializadas, em operações de maior risco, que se seguem à ocorrência de morte de policiais, sem essas câmeras disponibilizadas”.
Segundo ele, o governo do estado se comprometeu a usar tecnologia para identificar falhas, inclusive se o policial tentar “frustrar a transmissão dessa imagem tapando a câmera”, ou até por “falha mecânica que envolva má-fé”. Ele lembra que “o Supremo autorizou que não houvesse a gravação ininterrupta a partir de justificativas de ordem técnica e de custo do próprio estado”, mas que “o resultado final não pode se alterar”.
“Se o estado depois demonstrar que nas operações de multilateralidade, nas operações de mau uso de confronto, não se está sendo disponibilizado esse material, as imagens não estão sendo transmitidas, isso vai voltar a ser discutido”, conclui.
Um levantamento de 2023 do Instituto Sou da Paz mostrou que, após a implantação das câmeras com gravação contínua, houve queda de 46% nas mortes de jovens de 15 a 24 anos em ações policiais no estado. Angeli reforça que os equipamentos funcionam como um instrumento de proteção tanto para os civis quanto para os agentes da segurança pública.
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