Enfrentamento ao Zema na mídia se deve ao Brasil de Fato MG, diz especialista sobre jornalismo

Nesta semana, o Brasil de Fato MG chega à edição impressa de número 500. A fim de celebrar, mas também buscando refletir sobre o papel da comunicação popular em nossa sociedade, convidamos Ângela Carrato, professora de jornalismo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), para uma entrevista sobre o tema. 

Além de ser pesquisadora da história do jornalismo e da televisão pública no Brasil, ela atuou no campo da comunicação, em especial com os temas da política e da economia. Em nossa conversa, Ângela aborda o histórico da mídia no país, a potência das iniciativas populares e alternativas e os caminhos para o futuro da comunicação.

Confira a entrevista completa:  

Brasil de Fato MG – Como se estrutura a mídia comercial no Brasil? Como você avalia o jornalismo hegemônico?

Ângela Carrato – Temos que entender, o que não quer dizer concordar com, as peculiaridades da história do jornalismo e da mídia brasileira. Diferentemente dos países europeus,  dos Estados Unidos e mesmo dos nossos vizinhos mais próximos, como Argentina, Bolívia, Chile e Equador, a mídia corporativa brasileira sempre foi uma mídia com donos, oligárquica. Uma mídia “capitania hereditária”, passada de pais para filhos, sem qualquer comprometimento com os interesses da maioria da população.

A Europa, desde 1910,  já tinha uma compreensão de que determinadas áreas importantes e estratégicas não poderiam ficar na mão da iniciativa privada. Essa compreensão primeiro teve a ver com correios e telégrafos. Quando surge o rádio, sobretudo depois da Primeira Guerra Mundial, se estendeu a mesma compreensão. Um veículo de comunicação é muito importante para ficar na mão de interesses privados. O melhor exemplo disso foi a British Broadcast Corporation (BBC) inglesa. 

Com essa mesma atenção, a televisão também surge na Europa como veículo público. O que significa que não tinha relação com o governo e não era bancada por anunciantes. Era bancada pela população, por meio de uma espécie de taxa. Não havia publicidade na mídia europeia até o início dos anos 1980.

Aqui, nós nunca tivemos uma comunicação pública. Ao contrário, a imprensa brasileira surge nas mãos de poucos e por isso não temos, na nossa história, uma imprensa voltada para o interesse público. Estamos em 2025 e essa questão continua colocada. 

Nós temos uma imprensa corporativa que não tem nenhum compromisso com a realidade brasileira. Eu costumo dizer que a capital para essa mídia é Washington, não é Brasília. 

Não temos alternativa a não ser  ampliar e aprofundar a mídia popular

E um dos problemas gravíssimos que a gente enfrenta é que, como essa mídia corporativa nunca teve nenhum tipo de controle, ela cresceu, se tornando um monstro difícil de controlar.

Enquanto a Europa tem regulações e não pode ter, por exemplo, mais de um veículo em uma mesma cidade do mesmo grupo, aqui, o jornalista ou empresário que atenta contra a ética ou divulga mentiras sai impune.

Agora, a grande novidade dos últimos 10 anos, mas sobretudo depois do golpe contra Dilma Rousseff, é a imprensa independente, no suporte digital. Uma comunicação que é popular, tendo em vista o conteúdo dela, mas não no sentido de todo mundo ter acesso a ela. Esse é um problema sério para nós. 

Qual é a importância da construção e presença das mídias populares no cenário nacional e internacional?

A importância é total, porque são mídias que têm como referência, como razão de ser, os interesses populares. Se a gente pegar a história dessas mídias na Europa, nos Estados Unidos e mesmo na Argentina, elas estão muito ligadas à luta sindical, à luta dos trabalhadores. 

No Brasil, temos outras características nessas mídias. Por exemplo, nos anos 1960, tivemos uma mídia importante ligada aos camponeses, em sintonia, por exemplo, com as ligas camponesas. 

Durante a ditadura, a partir de meados da década de 70,  passamos a ter também uma mídia popular voltada para setores que emergiam na sociedade: mulheres, por exemplo, com o jornal Mulherio, um dos primeiros na luta das mulheres feministas. A gente tinha também um jornal pioneiro, Lampião da Esquina, que destacava a luta do movimento LGBTQIA+.

Também existem publicações independentes, alternativas, voltadas para cultura e para a arte, fora dos trilhos tradicionais. Quando falamos em mídia popular, é popular no sentido de defender os interesses da maioria. E entre os interesses da maioria estão, obviamente, a arte e a cultura.

Não posso deixar de destacar o papel do Brasil de Fato, que hoje é uma mídia nacional. Um jornal, em diversos suportes: impresso, site, redes sociais, rádio e podcast. E é muito importante, porque as temáticas que o Brasil de Fato aborda não são pautadas pela imprensa comercial. 

Por exemplo, em Minas Gerais, a mídia comercial está toda na mão do governador Romeu Zema (Novo) e não fala nada sobre as barbaridades que ele faz. E, para sabermos sobre alguma coisa, ou é a mídia independente ou é o Jornal Brasil de Fato, que acompanha no detalhe.

Nesse sentido, como você avalia a postura do governo Lula (PT) em relação ao tema da comunicação? 

Olha, é claro que eu gostaria que o terceiro governo Lula tivesse uma outra postura em relação à comunicação. Eu acho que o próprio Lula gostaria. O problema é que o atual governo Lula é, sem dúvida, o mais difícil, porque conseguiu derrotar nas urnas o fascismo e, para ter viabilidade e governabilidade, precisou se estruturar em cima de uma frente ampla.

E eu acredito que, tirando o PT e demais partidos de esquerda que estão no governo, os outros são todos contra qualquer modificação no que diz respeito à mídia. Eles têm pavor de democratização da mídia.

Mas ele tomou algumas providências que eu acho que são muito importantes e a gente tem que destacar. A primeira delas foi criar, em 2007, a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e, no segundo governo, tivemos a primeira e única Conferência Nacional de Comunicação, com quase mil representantes de três segmentos: Estado, empresas e interesses populares. 

Nós aprovamos, em quatro dias de intensos debates no Centro de Convenções Luiz Guimarães, em Brasília, mais de 660 propostas. E elas foram consolidadas em um conjunto de propostas que o presidente Lula recebeu e ficou, digamos assim, como herança, uma sugestão, para o governo Dilma.

Mais do que nunca a mídia popular é necessária

Eu tive oportunidade, em uma entrevista com a ex-presidente Dilma, de perguntar por que ela nunca levou à frente esse conjunto. Ela justificou que, no primeiro mandato, não tinha maioria no congresso, portanto não passaria. E no segundo mandato já começou completamente torpedeada, tanto que houve um golpe. 

E aí entra aquele problema, que eu já mencionei, mas eu gostaria de enfatizar. Não é fácil regular uma mídia, quando ela já é muito poderosa, como é a brasileira. Se a regulação tivesse acompanhado o crescimento dela, como aconteceu na Europa e nos Estados Unidos, não teríamos esse problema. 

Então, eu acho fundamental cobrar do presidente, cobrar das instituições, mas nós também temos que nos movimentar. Nós temos que ir para a rua. Quando a mídia foi tema de manifestação no Brasil?

E em Minas? De que forma você compreende a relação do governo estadual com as mídias?

No início dos anos 60, tínhamos no estado 13 jornais, ou seja, a gente ainda tinha dentro da mídia uma certa pluralidade. Veículos de esquerda, de direita, de centro e de extrema direita também. Mas, quando vem o golpe de 1964, toda a mídia de esquerda ou mesmo de centro esquerda é massacrada. 

Então, no fim dos anos 1960, daqueles 13, sobraram praticamente só os veículos do Estado de Minas e um outro veículo que foi cambaleando, mas acabou chegando no fim da década de 70 inexistente. Até meados dos anos 80, tivemos a hegemonia completa dos Diários Emissores Associados em Minas Gerais.

Eles eram jornais, tinham duas emissoras de televisão, tinham três de rádio, mandavam e desmandavam. O primeiro questionamento a essa mídia teve a ver com uma figura que não tem nada de popular, Newton Cardoso. Uma figura que eu considero muito ruim, mas ele não topou a jogada com os associados e aí começou uma campanha dos associados contra ele. 

Assim, ele decide criar um jornal,  o Hoje em Dia, mais amplo em termos de cobertura do que o Estado de Minas, mas um jornal ligado ao governo de Minas. Outro jornal que surge é o O Tempo, que tem a mesma pegada.

Mídia comercial não denuncia abusos do governador de Minas

Agora, por trás disso, temos o fato de que Minas Gerais não tem um empresariado que banque a mídia corporativa, como tem no Rio e São Paulo. Aqui, essa mídia depende muito de governo. E, cada vez mais, ela é subserviente aos governos, em uma relação de mão dupla, onde o governo também faz o jogo dessa mídia, porque na verdade são da mesma classe. 

E isso não mudou. Não é caracterizado, mas o que a gente tem em época de campanha eleitoral é release de campanha. Não é cobertura. Uma vez eleito Zema, qual foi a diferença? Todas as facilidades que o Fernando Pimentel (PT) não teve, ele teve.  

Em sua reeleição, com o dinheiro para indenização pelos crimes da Vale, em vez de gerir nas regiões atingidas, ele fez politicagem e dividiu o recurso com todos os prefeitos de Minas Gerais. Assim, ele passa a ter, na maioria desses prefeitos, cabos eleitorais dele. A mídia corporativa falou alguma coisa sobre isso? Nada. A maioria da população de Minas Gerais não sabe o que acontece aqui. 

Não tendo imprensa, mídia no sentido mais amplo, prevalece a visão de quem está ocupando poder.

As mídias de caráter popular têm potencial e força para fazer frente ao modelo comunicacional hegemônico?

O papel dessa mídia é fundamental. Não temos alternativa a não ser  ampliar e aprofundar a mídia popular,  em rádios, TVs e na web. Pressionar o governo também por concessões, para canais, de movimentos sindicais populares. 

Uma iniciativa muito bacana é a TVT de São Paulo, a TV dos Trabalhadores, que é uma parceria dos sindicatos bancários com sindicatos metalúrgicos do ABC. Temos que ter outras iniciativas nessa linha e pressionar o governo para que tenha condições, sessão de canais. 

Temos também as rádios comunitárias, que são emissoras importantes. No Brasil, são mais de 5 mil, mas elas estão regidas por uma legislação ainda muito tacanha, com um corte autoritário. A abrangência do sinal é muito pouca. 

O Brasil de Fato, que é apoiado por vários sindicatos e movimentos sociais, talvez seja a maior iniciativa, junto com a TVT, nesse sentido hoje no Brasil. 

Temos um espaço para crescer enorme. Mais do que nunca a mídia popular é necessária. A primeira ação deveria ser grandes campanhas mostrando para as pessoas a importância de uma mídia popular, levantando essa bandeira. 

O jornal Brasil de Fato MG está chegando a sua edição de número 500. Qual é a importância dessa ferramenta? 

Primeiro, parabéns pelas 500 edições, vida longa e eterna para o Brasil de Fato. No campo popular, hoje, em Minas Gerais, é um único jornal popular, o que aumenta mais ainda a responsabilidade. 

Eu acho muito importante, porque ele aborda todos os temas políticos, econômicos, sociais e culturais, mas também a própria mídia é sempre tema no Brasil de Fato, e a gente não pode esquecer disso nunca.

A mídia é notícia. Na mídia corporativa, a mídia não é notícia ou só é notícia quando interessa. Mas nunca se entra no debate sobre o papel, a função social e a crítica que se deve fazer. Isso tudo a gente encontra no Brasil de Fato. 

Nós temos que ir para a rua. Quando a mídia foi tema de manifestação no Brasil?

E é uma moçada muito bacana. Eu acho interessante porque são várias gerações, mesclando gente muito experiente, que viveu, sofreu e enfrentou a ditadura, e um pessoal muito novo, mas também muito cabeça boa. Acho que esse mix é muito interessante e transforma o jornal Brasil de Fato em uma publicação muito atrativa. 

E, eu acho, que se temos uma visão crítica e um enfrentamento ao Zema hoje, se deve ao Brasil de Fato MG. Não tem quem cale a boca do jornal Brasil de Fato MG, em se tratando de denúncias sobre as medidas do governo Zema.

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