Porto Alegre segue vulnerável a cheias e alagamentos

No dia 3 de maio de 2024, as águas que devastaram cidades do interior do Rio Grande do Sul inundaram Porto Alegre em níveis jamais vistos. O sistema de proteção contra enchentes da cidade falhou. Ao todo, 46 bairros ficaram inundados e mais de 157 mil pessoas foram atingidas. Um ano depois, a cidade segue vulnerável e moradores atingidos pedem para não serem esquecidos.

O sistema de proteção da cidade conta com 64 quilômetros de diques e muros, 23 casas de bombas de drenagem e 14 comportas. Sem manutenção, não foi capaz de conter os alagamentos. O engenheiro especialista em Planejamento Energético e Ambiental Vicente Rauber alerta que a cidade segue despreparada para um evento climático como o do ano passado.

“Vamos torcer para que não aconteça hoje. Porque se acontecer, lamentavelmente, a cidade inundará de forma muito semelhante”, avalia.

Hoje, casas de bombas seguem aguardando uma reforma definitiva. Quem passa ao lado da rodovia que serve como dique vê comportas quebradas ou caídas no chão. Outras comportas foram cimentadas, contra a recomendação de especialistas. A prefeitura afirma que investirá R$ 11 milhões em obras, mas por enquanto, pouca coisa saiu do papel.

Confira a reportagem em vídeo:

Rauber foi diretor do Departamento de Esgotos Pluviais da cidade, o DEP. O órgão cuidava da drenagem e da proteção contra cheias, mas foi extinto em 2017. Uma parte das funções foi repassada ao Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), que corre risco de privatização. Outra parte foi terceirizada.

Segundo Rauber, a partir daí, as manutenções foram insuficientes. “Porto Alegre possui um dos melhores sistemas de proteção contra cheias do Brasil. E por que ele não funcionou? Porque justamente as comportas externas vazaram. Por quê? Porque não tiveram a manutenção adequada desde 2020. Também vazaram aquelas comportas que existem junto às casas de bombas num nível mais abaixo, e a água do Guaíba entrou por aí e inundou a cidade”, explica.

A opinião do engenheiro é respaldada por outros 47 signatários da “Manifestação aos Porto-alegrenses sobre o Sistema de Proteção Contra Inundações de Porto Alegre”. Dias após a enchente, o grupo composto por especialistas como engenheiros, arquitetos e outros profissionais ligados à área de planejamento e águas pluviais da cidade divulgou o documento que aponta falhas e sugestões para aperfeiçoamento.

“Qualquer chuvinha o bairro alaga, muito mais do que antes”

Protesto no Sarandi: moradores caminharam com velas acesas até o ponto do rompimento do dique, em homenagem às vítimas da enchente – Foto: Rafa Dotti

O Sarandi, na periferia da zona norte, foi o bairro mais impactado de Porto Alegre. Durante a enchente, o dique da região rompeu e deixou 26 mil pessoas desabrigadas. Desde então, os alagamentos se tornaram frequentes depois de chuvas fortes.

No dia em que a inundação do bairro completou um ano, moradores saíram às ruas para protestar contra o abandono do poder público. O sentimento é de insegurança, como conta Maribel Victor, que recém tinha reformado sua casa quando veio a enchente. Não sobrou nada, e ela teme passar por tudo outra vez.

“Nenhuma segurança, porque qualquer chuvinha o bairro inteiro alaga. E alaga muito mais do que antes. A minha rua mesmo não alagava e agora alaga, então a gente tá sempre com o coração na mão. Qualquer pingo ou uma nuvem que fecha no céu, a gente fica… Eu mesma já deixei meu kit sobrevivência pronto. Qualquer coisa pra sair correndo”, conta a moradora.

“A gente não tem perspectiva”

Adalto da Rosa também perdeu tudo na enchente. Onde ele mora, as águas chegaram ao segundo andar. Décadas de esforço para conquistar o que tinha naufragaram. Ele cobra a conclusão dos trabalhos do dique, que está sendo reconstruído numa altura abaixo da recomendada por especialistas.

“Quando é que eles vão começar a fazer mesmo a contenção que realmente vai dar uma sensação de segurança pro povo aqui da vila do Sarandi? Não tem! A gente não tem perspectiva. O que a gente tem é que a cada chuva que dá, tu fica acordado de noite, tu não consegue dormir, tu fica olhando pra rua pra ver se tá enchendo de novo”, desabafa.

O conserto do dique do Sarandi foi suspenso após uma batalha judicial. A prefeitura queria a remoção imediata de famílias que vivem próximo à estrutura, mas a Justiça negou. O entendimento foi que os moradores corriam risco de ficar desamparados, sem acesso a auxílios ou programas de realocação.

Entulhos no Sarandi após as águas baixarem em 2024 – Foto: Carlos Messalla

Oposição acompanha questão da moradia

Na Câmara de Vereadores, a oposição ao governo de Sebastião Melo, do MDB, tem acompanhado de perto a situação das pessoas que perderam a moradia ou estão em áreas de reassentamento. Como explica a vereadora Juliana de Souza (PT). “Nós acompanhamos aqui no Sarandi, acompanhamos nas ilhas, no conjunto dos bairros atingidos, mas também estamos fazendo as exigências para que o sistema de proteção seja reconstruído nas condições que ele deve”, afirma.

Segundo ela, entre as cobranças está o projeto de construção do muro de contenção na Asa Branca, no Sarandi. “Para proteger aquela parte do bairro que também ficou 20 dias, 30 dias embaixo d’água, ele está abaixo da cota que é recomendado por todos os especialistas. O projeto é de 5 metros e todos os especialistas recomendam que seja de 7 metros.”

A vereadora lembra que há recursos para executar o projeto de reconstrução do dique ─ os R$ 6,5 bilhões que o governo federal disponibilizou para obras de proteção no Rio Grande do Sul. “Desse valor, são R$ 2,5 bilhões para a obra que inclui a reconstrução do dique do Sarandi, mas o governo do estado ainda sequer licitou os estudos técnicos. Então a oposição está atuando tanto em cobrança ao governo Melo como também ao governo Leite, que é quem vai executar os recursos federais nas obras do sistema de proteção.”

Cuidar do meio ambiente

O engenheiro Vicente Rauber avalia que a recuperação do sistema de proteção contra cheias é só o primeiro passo para lidar com os eventos climáticos extremos. Para ele, é fundamental cuidar do meio ambiente.

“Primeiro, tem que conservar aquilo que nós já temos para nos proteger. Segundo, nós precisamos ajudar a natureza a se recuperar. Existe o aquecimento do planeta excessivamente porque nós emitimos muitos gases de efeito estufa que vão engrossar a camada de ozônio e reter mais calor do que o necessário, e com isto se sobreaquece a terra”, analisa.

Segundo ele, é preciso emitir menos gases de efeito estufa e também retê-los. “O que é preciso fazer? Primeiro, valorizar todo o saneamento. Segundo, trabalhar mais com a natureza, mais árvores é fundamental, porque as árvores, além de regular o clima, tornar mais agradável, elas retém muitos gases de efeito estufa.” 

Rauber prossegue lembrando da poluição pelo uso de combustíveis fósseis. “Nas grandes cidades, como é o caso de Porto Alegre, aproximadamente dois terços dos gases de efeito estufa são emitidos pelos veículos que usam gasolina e diesel. Quando forem substituídos por veículos elétricos, o veículo elétrico praticamente não tem nenhuma poluição, apenas possui um pequeno ruído. Aí nós não mais emitiremos estes gases de efeito estufa, teremos um clima melhor e ajudaremos o planeta a se recuperar para que eventos desta magnitude, ao longo do tempo, comecem a não mais acontecer.”

Enquanto não surgem soluções definitivas, a população pede para não ser esquecida, como afirma a moradora do Sarandi Maribel. “Eu acho que os governantes precisam parar e olhar mesmo pra gente. Ver que isso aqui realmente aconteceu, não foi brincadeira, e pode acontecer de novo. O inverno tá aí. Uma semana chovendo, a gente vai estar embaixo d’água de novo.”

O que diz a prefeitura

Questionada sobre as demandas dos moradores, a prefeitura de Porto Alegre respondeu em nota que as obras de reforço e elevação à cota de 5,8 metros dos diques do Sarandi e da Federação das Indústrias do RS (Fiergs) iniciaram em agosto de 2024. No da Fiergs, os trabalhos estão em fase final e devem ser encerrados até junho. Já no do Sarandi, a primeira fase foi concluída em janeiro e a segunda fase está parada em razão da necessidade de acolhimento de 57 famílias que viviam irregularmente junto, ou sobre o dique.

O Executivo municipal disse ainda que uma terceira fase está prevista, com necessidade de acolhimento de 135 famílias, processo conduzido pela Procuradoria-Geral do Município (PGM) e o Departamento Municipal de Habitação.

Sobre as comportas, afirma que das 14 passagens que existiam na última cheia, o Dmae fechou três definitivamente e fechará outras quatro. O fechamento visa reduzir possibilidades de infiltração. Informou que quatro comportas que não apresentaram problemas na última cheia receberam melhorias de vedação. Outras três serão substituídas e a concorrência está com contrato assinado.

Quanto às casas de bombas, a prefeitura diz que elas não fazem parte do sistema de proteção contra cheias, e sim de drenagem urbana. Afirma que as 23 estações estão em funcionamento e que 17 contam com geradores para a garantia do funcionamento do sistema em caso de falta de energia elétrica.

A prefeitura também informa que a instalação de sistemas que acionam os geradores em caso de queda na energia elétrica foram instalados em março. Por fim, diz que modernização, reforma dos prédios, elevação de painéis, substituição de motores e instalação de geradores permanentes depende da conclusão de processos licitatórios, que devem ser lançados em junho deste ano.

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