No mês em que o massacre de maio de 2006 completa 19 anos, o Movimento Independente das Mães de Maio avança em uma articulação com universidades para construir políticas públicas voltadas às mulheres que perderam seus filhos para a violência de Estado. O projeto EnfrentAção, lançado nesta nesta quarta-feira (7), busca sistematizar o adoecimento dessas mães, com base em evidências científicas, para fundamentar uma proposta de atendimento psicossocial diferenciado para elas.
“Essa convivência que nós temos com a academia vem desde 2016, quando primeiro provocamos a academia. Metemos o pé na porta, porque não estava de porta aberta para nós, e precisávamos contar a história que não foi contada. Ela foi acobertada no Estado de São Paulo”, relata Débora Silva, uma das fundadoras do movimento que surgiu após a execução de seu filho Edson Rogério Silva dos Santos, em maio de 2006. Ela foi entrevistada no Conexão BdF, da Rádio Brasil de Fato.
Desde então, as Mães de Maio vêm pressionando o Estado por memória, verdade e justiça. Agora, com o projeto EnfrentAção, supervisionado por Silva, o foco está em evidenciar cientificamente os impactos da perda sobre os corpos dessas mulheres. “Conseguimos, com essa minha entrada dentro do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) [da Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp], uma brecha. E no ano passado, a gente também entregou para o Estado brasileiro uma pesquisa com a parceria da Universidade de Oxford sobre o adoecimento das mães.”
A proposta, em parceria também com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, nasceu da escuta direta de mulheres de cinco estados brasileiros: Bahia, Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. “O nome EnfrentAção sai do texto que foi pedido para todas as mães escreverem qual era a intenção, o que elas esperavam desse projeto. Em todas as falas das mães, tinha: ‘Nós já perdemos nossos filhos, vamos continuar enfrentando o Estado brasileiro’.”
Da dor à ação política
A articulação com a Unifesp não se limita à produção acadêmica. O objetivo final é pressionar o Congresso Nacional a aprovar o Projeto de Lei Mães de Maio (PL 2999/2022), de autoria do deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), que trata do atendimento especializado a familiares de vítimas do Estado. A proposta, que tramita em regime de urgência, está pronta para ser pautada no Plenário, segundo a Câmara dos Deputados.
“Nós queremos evidência científica, porque nós temos um PL. Um PL que faz a tratativa do adoecimento, o acompanhamento psicossocial diferenciado, porque os profissionais não estão preparados. Essa categoria não está, não só ela, como outras também. E essa demanda vem crescendo”, explica Débora.
A proposta prevê protocolos específicos para o atendimento dessas mães, considerando o sofrimento psíquico e físico que acomete muitas delas após a perda dos filhos. Segundo Débora, são recorrentes casos de adoecimento nos órgãos reprodutivos e outras doenças diretamente ligadas à dor do luto e à violência institucional.
“Elas acabam se tornando várias profissionais num corpo só de uma mulher. Só não conseguem ser, que eu sempre falo, juízas. Juiz não vem na pele preta, jamais”, protesta.
Um massacre silenciado
Débora lembra que, no massacre de maio de 2006, ao menos 564 pessoas foram assassinadas no estado de São Paulo durante supostas ações de combate ao crime. A resposta violenta ocorreu após ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) contra agentes de segurança. As mortes, em sua maioria de jovens negros da periferia executados por policiais, nunca foram devidamente investigadas.
“Foi acobertado pela Copa do Mundo, foi acobertado pela própria sociedade, foi acobertado por várias autoridades. Um montante de quase 600 mortos, que cada vez que se faz uma pesquisa, aumenta-se o numeral. Então, o numeral dado pelo governo não é o numeral que almejamos. Nunca foi, porque é fictício”, denuncia Silva.
A fundadora das Mães de Maio também critica a omissão do Judiciário. “O crime de maio foi tão grande, eram 10 pilhas de corpos, um em cima do outro, dentro dos Institutos Médico Legal [IMLs], e ninguém fala disso. Num Estado Democrático de Direito, temos um massacre desse e não se comenta isso. Foi escondido, jogaram para debaixo do tapete”, lamenta.
Apesar de o estado de São Paulo ter instituído, por lei, a semana de 12 a 19 de maio como período de memória das vítimas da violência do Estado, Débora ressalta que ainda falta reparação. “Edson nunca deixou de ser meu filho. Entramos no esquecimento. O nosso país é o país do esquecimento, não tem reparação. Mas, enquanto não houver reparação, não há paz nesse país.”
Para ela, o sofrimento dessas mães se deve a uma herança da ditadura no país. “Se tivesse tido essa reparação na ditadura, eu não estaria aqui. Então, eu digo que a ditadura não acabou. Ela não acabou que eu estou forjada nessa luta.”
Luto interrompido
Neste sábado (10), véspera do Dia das Mães, Débora completa mais um aniversário. A data traz contradições dolorosas. “É doloroso para mim, muito doloroso, que as mãe precisem fazer um trabalho junto com a academia, e buscar recurso também pra academia, pra termos um subsídio do Estado brasileiro. Eu não tive tempo de luto. Larguei a minha família pra dizer que meu filho era um gari. Mas, mesmo se ele fosse bandido, ele era o meu filho.”
Quase duas décadas depois da morte de Edson Rogério, Débora segue conduzindo um movimento que inspirou mães por todo o país. “Hoje eu sou mãe de maio do Brasil inteiro, conduzindo essas mulheres pra não parar de lutar. Amanhã eu posso também morrer. Eu estou preparada pra morrer. Mas eu estou muito mais preparada pra fazer essa transformação”, reforça.
Para ouvir e assistir
O jornal Conexão BdF vai ao ar em duas edições, de segunda a sexta-feira, uma às 9h e outra às 17h, na Rádio Brasil de Fato, 98.9 FM na Grande São Paulo, com transmissão simultânea também pelo YouTube do Brasil de Fato.