Eleito presidente do Conselho Municipal de Política Cultural de João Pessoa para a gestão 2025–2027, Givanildo M. da Silva, o Giva, assumiu, desde esta quarta-feira (8), o desafio de fortalecer a articulação entre a sociedade civil e o poder público em torno das políticas culturais da capital paraibana.
Modificado pela Lei 1.617/2005, o Conselho é um órgão permanente, deliberativo e consultivo, com funções normativas e fiscalizadoras no campo da cultura. Ele representa uma ponte institucional entre o município e os diversos setores culturais da cidade.
Em entrevista exclusiva, Giva apontou como prioridade a resolução dos problemas provocados pela negligência entre os editais e a execução orçamentária do Fundo Municipal de Cultura (FMC), o que, segundo ele, tem causado graves prejuízos aos fazedores e fazedoras de cultura. Para ele, é impossível construir uma política cultural consistente sem a elaboração e aprovação de um Plano Municipal de Cultura.
Além disso, defende uma atuação estratégica do conselho no fortalecimento dos territórios, o que ele chama de ‘desenvolvimento com envolvimento’, propondo a modernização do FMC, o encaminhamento ao segundo ciclo da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) e o respeito à decisão judicial que obriga a Funjope a realizar concurso público – algo nunca feito desde a criação do órgão em 1995.
Educador, produtor, escritor e pesquisador do Núcleo Opará (vinculado ao CLAEDS/FLACSO-Brasil), Giva também integra a AME – Aliança Multiétnica de Indígenas no Contexto Urbano. Seu histórico de militância e articulação fortalece sua atuação em um dos cargos mais estratégicos da cultura local.
Confira a entrevista completa.
Brasil de Fato: Você foi eleito conselheiro de cultura da cidade de João Pessoa, com início do mandato ainda em maio. Quais são as prioridades, os pontos que devem ter a maior atenção, de forma emergencial?
Giva: O conselho é um órgão deliberativo, controlador e normatizador, ou seja, ele fiscaliza e decide sobre as políticas públicas para a área da cultura. Ele é fiscal, ele cria normas para que essas políticas possam ser executadas. Então, é bem amplo e de uma importância muito grande. A cultura, além de fortalecer as identidades, é comprovadamente muito importante para a saúde das pessoas, principalmente a saúde mental. Ela impacta positivamente, economicamente, a cidade. Então, a cultura tem uma importância.
Temos identificado diversos problemas que exigem ajustes de conduta, especialmente por parte da administração pública. Um dos principais é a forma como os editais vêm sendo conduzidos pela gestão, o que tem prejudicado significativamente o setor cultural e impactado negativamente tudo aquilo que a cultura pode oferecer para a melhoria das condições de vida da população da cidade.
O inverso acontece com os fazedores e fazedoras de cultura, porque essas pessoas não conseguem ter suas vidas planejadas. Tem impacto na saúde mental, e isso ocorre porque os editais, principalmente no Fundo Municipal de cultura, não seguem um cronograma de execução – principalmente no desembolso de recursos para os fazedores e fazedoras de cultura. Então, esse é um grande problema que os órgãos públicos e o conselho de cultura devem se mobilizar para responder e resolver.
Brasil de Fato: O que de fato significa ser o conselheiro de cultura? O que esse cargo faz?
Giva: O conselho é formado por duas partes: metade governo, metade sociedade civil. Mas ele deve ser pensado como um todo — e nem sempre isso ocorre. Vamos falar sobre o papel do conselho, e não do conselheiro em si. O conselho é um órgão deliberativo, normatizador — ou seja, cria normas — e também controlador e fiscalizador das políticas de cultura do município de João Pessoa.
Também é um formador de opinião, porque o conselheiro municipal de cultura tem uma exposição pública. Portanto, ele deve emitir suas opiniões, problematizar a política cultural, estar em espaços de discussão. Então ele tem esse papel. O cargo é de relevância pública, então, mesmo não recebendo nada, essa representação coloca o conselheiro nesse lugar de contribuir em um processo de reflexão e elaboração da política pública.
Brasil de Fato: A comunidade cultural comenta que a Funjope não tem uma linha de trabalho muito clara e que os consumidores(as) de cultura não veem muita atividade cultural circulando na cidade. O quão negativo isso pode ser para a população?
Giva: É muito claro isso, porque não tem um Plano Municipal de Cultura. Então, a Prefeitura vai fazendo política cultural sem planejamento, sem ter um calendário claro e que seja permanente. A gente não pode trabalhar apenas com calendários de manifestações culturais de época, tem que ser permanente.
Eu acho que essa fragilidade começa com o fato de que, em 30 anos, nunca se fez um concurso público. Então, todos os administradores que entram, todos os gestores, mudam a equipe da Funjope a seu bel-prazer. Então não se cria uma política de Estado, cria-se uma política de governo — e políticas muito frágeis. Esse tipo de política, que remete muito à visão de Estado patrimonialista, onde o Estado “me pertence”, precisa ser superado, porque estamos em outro momento. Temos outros marcos legais.
Eu penso que o Plano Nacional de Cultura traz elementos muito importantes para que a política se torne uma política de cultura forte. É uma referência porque houve um intenso movimento da sociedade civil, dos fazedores e fazedoras de cultura, na construção desse processo. Ele tem essa consistência exatamente por isso: todas as contradições, todas as reflexões, e as pessoas da cultura estavam participando.
Então, a gente vai identificar que a fragilidade está exatamente na ausência de um Plano Municipal de Cultura. E tem a questão dos trabalhadores e trabalhadoras da cultura, que não têm uma política permanente. O que temos é uma política influenciada pelos ventos do governo de plantão.
É importante dizer que, para que uma política tenha impacto em uma comunidade, em uma cidade, ela precisa impactar uma geração — ou seja, 20 anos. Você precisa construir e consolidar uma política durante um período de 20 anos. Por isso, ter um Plano Municipal de Cultura é importante, pois ele vai se apresentar na sua totalidade. E, mais do que isso, o povo vai ter a possibilidade de intervir permanentemente nessa política. Assim, vamos ter uma política regionalizada, enraizada, forte, que responde às necessidades da população de João Pessoa.
Brasil de Fato: Outro ponto importante é a realização de grandes eventos gratuitos nas praias, que consomem milhões dos cofres públicos. Muitas vezes, são contratadas bandas alvo de críticas, com propostas artísticas questionáveis, enquanto artistas locais enfrentam falta de isonomia no acesso a esses contratos. Como você avalia essa postura da prefeitura em relação à política cultural e à valorização dos grupos artísticos da cidade?”
Giva: Essa é uma das questões mais importantes, porque a cabeça do gestor funciona de uma forma muito limitada. O gestor entende que esses eventos de época, com grande público, dão visibilidade para sua gestão. E isso, para nós, sempre foi um olhar equivocado. Todo esse dinheiro que é gasto — se a gente for verificar quanto é destinado para o Fundo Municipal de Cultura e quanto é destinado para esses eventos —, ou seja, para o Fundo Municipal de Cultura vai quase nada, e para esses eventos, são milhões.
E o que fica de recurso para a cidade? Qual o ganho cultural? Então, é um ganho cultural muito baixo. O que fica para a cidade também é muito pouco, porque esses eventos são sazonais, e a política cultural não pode viver de forma sazonal. Por outro lado, os artistas da cidade são preteridos em detrimento desses grandes eventos.
O que a gente precisa é construir política cultural de qualidade, investir na formação de público. A gente tem tantos artistas! A Paraíba tem um celeiro riquíssimo de artistas e está oferecendo para o mundo tantos cantores e cantoras, atores e atrizes. A gente tem uma diversidade imensa nas artes plásticas, no audiovisual, na fotografia, enfim, todas as áreas têm uma qualidade imensa, mas são preteridas por essas atividades de época que vão ceifando todos os recursos destinados à área cultural.
E isso, por outro lado, se for um artista que tem alguma identidade com a cidade, até ok. Mas, se não, esse artista vai trazer uma outra visão de mundo e pode impactar a identidade cultural local de forma negativa. Porque uma coisa é a troca cultural, e outra coisa é a imposição cultural. A gente não pode ficar refém da indústria cultural de massa. A gente tem que se contrapor a isso, porque cada grupo social, cada povo, tem o seu diferencial de identidade.
Brasil de Fato: Você tem atuado com muito afinco, com muita dedicação aos fóruns de Cultura. Quais as principais batalhas que esses fóruns têm enfrentado?
Giva: Os fóruns de cultura foram construídos a ferro e fogo pelos fazedores e fazedoras de cultura, em momentos muito dramáticos para a área. Os fóruns de cultura deram um salto de mobilização durante a pandemia, quando participaram de toda a discussão da Lei Aldir Blanc e, depois, da Lei Paulo Gustavo. Enfim, foi um momento muito intenso. Também foi um momento em que a mobilização da área cultural era muito grande.
Os fóruns de cultura são espaços de articulação do povo, da sociedade civil, dos fazedores e fazedoras de cultura. É um espaço onde a gente elabora e pensa a política a partir da atuação e da contribuição que podemos dar para a totalidade da política cultural. É por isso, inclusive, que o conselho de cultura deve ser a expressão dos diversos segmentos de cultura.
E, claro, que temos desafios. Por exemplo, a precarização do trabalhador e da trabalhadora de cultura, que saem mobilizados de seus fóruns. Outro ponto é que a gente precisa compreender qual é a dimensão dessa política cultural que foi construída por nós. Porque uma coisa é participar do processo de construção, mas a gente precisa ter a compreensão da concepção: qual é essa concepção? Qual é o nosso papel? Quais são os mecanismos de efetivação dessa política?
Pensando nisso, construímos um seminário que começa agora, dia 19 de maio, para quem ouve e para quem faz — fazendo um alerta e chamando para uma política cultural que deve ser plural. Nós, da cultura, temos passado por um longo processo de escuta, e também vivemos o processo de quem faz. Agora, na construção desse seminário, pela primeira vez, quase que majoritariamente, ele é composto por fazedores e fazedoras de cultura dos diversos segmentos: setores de produção, setores indígenas, grupos LGBTQIA+, pretos e pretas, cultura tradicional… enfim, diversos segmentos de culturas. E é um esforço de qualificação de quem está na luta.
Brasil de Fato: E por fim queria que você falasse um pouco da diversidade cultural de uma cidade, uma metrópole como João Pessoa, que engloba outras cidades satélites considerando tanto a arte genuína mas também a arte de periferia, ou até mesmo a prevalência generalizada do forró de plástico, do pagode e outros estados, da música sertaneja, e da música internacional também.
Giva: João Pessoa é uma cidade muito rica culturalmente. Inclusive, acho que é uma cidade que não é totalmente explorada. Para quem chega recentemente, atraído por essa ideia de uma cidade com qualidade de vida, acaba se restringindo a determinados setores da cidade, o que limita sua visão sobre ela e suas diversas expressões. Não vai conhecer o coco, não vai conhecer a ciranda, não vai conhecer as batalhas de rima que têm o hip-hop, o ballroom, não vai conhecer as diversas atividades que reivindicam e afirmam as tradições indígenas e LGBTQIA+, como o que o Nai Gomes faz no seu ateliê multicultural.
Então, a gente tem uma diversidade muito grande — e eu estou deixando muita coisa de fora. Muita coisa mesmo. As pessoas não vão conhecer essa diversidade que é o carnaval paraibano, com a Ala Ursa e tantas outras manifestações, as tribos indígenas, que são um espetáculo belíssimo de afirmação das identidades. Não vão conhecer essa musicalidade que foi construída também com o Jaguaribe Carne, que tem sua própria identidade.
É importante a gente pensar na política cultural massificada. A gente sabe, por exemplo, que um setor econômico como o do agronegócio comprou uma série de rádios pelo Brasil para tocar música sertaneja e determinados estilos de música — e também o forró de plástico, o pagode — embora o pagode tenha características diferentes.
E aquilo que eu falei inicialmente: existe a troca, mas a troca não pode ser desigual. Ela precisa ser igual. A Elba Ramalho falou há algum tempo, em Campina Grande mesmo, no São João, que ninguém chama a gente daqui para tocar na Festa do Peão de Barretos. Então, qual é a relação de igualdade? Porque o contrário acontece. A gente vê essas figuras que vêm de fora como a “tradição”, com uma outra perspectiva cultural — e, diferente daqui, conseguem até expulsar o Flávio José, que é a maior expressão do forró tradicional na Paraíba. Não é possível um troço desses!
A relação é desigual. E toda relação desigual alguém sai perdendo. E, nesse caso, a perda aqui é da identidade do estado, da identidade do município. Então, são pontos que é necessário — que é importante — a gente voltar a discutir, fazer rodas de conversa, refletir sobre essas questões. Construir esse caminho em que a gente se reconheça, em que o povo daqui se reconheça. E não como um espelho distorcido, disforme, que é apresentado para nós. E que, muitas vezes, pela repetição, a gente acaba ouvindo, naturalizando — e até gostando daquilo, achando que gosta daquilo.
O professor José Miguel Wisnik falava dessa construção dessas musicalidades fáceis, que acabam grudando como chiclete nas pessoas. E que, quando você tem essa música fácil, você inibe o acesso a outro tipo de música, mais complexa — que ajuda, inclusive, no nosso processo cognitivo. E tem todo um impacto.
A gente sabe que não tem todo esse poder para mudar, porque existem limitadores. E um dos limitadores é a vontade dos governantes de aprofundar e dar um olhar diferente — um olhar que vá ao encontro do seu povo. Isso é importante. Mas a nossa contribuição, a gente quer dar. E nós vamos lutar para que possamos mudar essa situação.