Daniel Santini*, Deiny Façanha Costa*, Raquel Rolnik** e Paula Santoro**
A última edição da Pesquisa Origem e Destino (Pesquisa OD 2023) do Metrô reforça a preocupação em relação ao futuro do transporte público coletivo na Região Metropolitana de São Paulo. O estudo, uma pesquisa que é realizada a cada 10 anos e que foi antecipada em função dos impactos da pandemia, revela que pela primeira vez na história caiu o número total de viagens na metrópole, sendo que esta queda foi particularmente intensa no uso do transporte público coletivo. A Pesquisa OD 2023 inclui dados reunidos em pesquisas de mobilidade realizadas entre agosto de 2023 e maio de 2024 nos 38 municípios da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) com os resultados divulgados em fevereiro de 2025.
O uso do transporte público coletivo caiu tanto em termos absolutos quanto relativos. O número de viagens diárias caiu de 15,3 para 12,2 milhões comparando a Pesquisa OD de 2017, data do último levantamento, até o presente. É o número mais baixo identificado desde 1997, quando foram contabilizadas 10,4 milhões de viagens. A redução é ainda mais grave considerando o aumento de população de 2% entre os dois estudos (de 20,8 milhões em 2017 para 21,2 milhões em 2023). Ou seja, a proporção de pessoas se deslocando em relação ao total de habitantes da metrópole caiu, e também diminuiu a proporção utilizando transporte público coletivo.
A variação foi puxada principalmente pela redução do número de passageiros nos ônibus com queda de quase 3 milhões de usuários, conforme é possível observar no gráfico abaixo. Houve redução também no uso de trens e metrôs, mas em menor escala.
Viagens diárias em 2017 e 2023 conforme modo de transporte (x1.000)

A diminuição apontada pela Pesquisa OD confirma tendência de queda acentuada identificada em outros estudos. A situação dos ônibus municipais de São Paulo é especialmente preocupante. Monitoramento realizado pelo LabCidade com base nos dados da SPTrans aponta que, nem mesmo a política de Tarifa Zero aos domingos e feriados, tem sido suficiente para fazer o sistema recuperar a média anterior a Covid-19. A tendência de encolhimento foi acelerada pela pandemia, mas é anterior a ela.
Número de viagens diárias nos ônibus municipais de SP

Junto à redução do número de usuários houve também redução da oferta. Se, no final de 2017, ano do último levantamento, a frota da SPTrans era de 14.456 ônibus, no final de 2024 havia diminuído para 13.277 refletindo em demandas de aumento da frota e frequência dos ônibus pela sociedade civil. Nos trens e metrô, a crise pode ser relacionada a problemas antigos, como a superlotação e falta de investimento em infraestrutura, em especial nas linhas sobre trilhos que atendem às regiões fora dos limites da capital, bem como a problemas novos. A concessão de parte da rede da CPTM veio acompanhada de problemas técnicos constantes, como curto-circuito em vagões, além de paralisações e falhas de operação.
Aplicativos & motos
A queda de três milhões de viagens diárias no transporte público coletivo fez com que o número de viagens por transporte motorizado individual ultrapassasse o de viagens por transporte coletivo. São 12,8 milhões de viagens diárias em carros, aplicativos, táxis e motos. O número é ligeiramente menor do que o do levantamento de 2017, quando foram 13 milhões de viagens por transporte individual, mas superior ao dos deslocamentos em transporte coletivo.
Deslocamentos por modo de transporteFonte: Pesquisa OD 2023
Na história, apenas uma vez o número de viagens motorizadas individuais haviam passado o número de viagens coletivas: em 2002, na Mini Pesquisa OD, que é uma versão intermediária da pesquisa. A queda anterior motivou algumas medidas nos anos seguintes para reequilibrar a situação, como a implantação do Bilhete Único que possibilitou a integração tarifária entre ônibus, metrô e trem, assim como a ampliação dos corredores de ônibus.
Embora a frota de carros individuais tenha crescido 22% no período, o crescimento de viagens individuais desta vez foi impulsionado pelo aumento significativo do uso de transportes por aplicativos, que mais do que duplicou no período, e por motocicletas, como mostra o gráfico abaixo.
Viagens diárias em 2017 e 2023 conforme modo de transporte

Essa migração modal tem impactos na saúde pública e em mais mortes no trânsito. O número de fatalidades na Região Metropolitana de São Paulo subiu de 1.663 em 2017 para 2.065 em 2024 – marca mais alta desde os 2.127 mortos registrados em 2015, ano em que teve início o Infosiga – Sistema de Informações de Acidentes de Trânsito do Estado de São Paulo para disponibilização e transparência dos dados sobre acidentes de trânsito.
O aumento do número de motos, foi decisivo para tal escalada. O número de mortes de motociclistas na Região Metropolitana de São Paulo subiu de 522 em 2017 para 855 em 2024, maior marca registrada na história, superando mesmo os 616 de 2015. Na prática, morreram mais de 2 motoqueiros por dia na Grande São Paulo em 2024.
Estes dois modos – aplicativos e motos – foram os únicos que cresceram no período, captando parte dos passageiros do transporte público coletivo e compensaram a ligeira queda nos deslocamentos em automóveis particulares, mas este crescimento é insuficiente para explicar a queda total de viagens nos demais modos.
É a primeira vez na história que a pesquisa registra uma diminuição do número de viagens diárias e aumento da imobilidade: de 42 milhões de viagens em 2017 para 35,6 milhões no último levantamento, uma queda de 15,1% na viagens, e aumento do índice de imobilidade de 29% para 37%. Tal variação pode ter relação com novas dinâmicas de trabalho e consumo, como o aumento do trabalho e ensino remoto ou híbrido e ampliação do consumo por plataformas digitais. Apesar da atual pesquisa não permitir comparar os dados de trabalho e ensino remoto com a OD anterior, o chamado home office ou trabalho remoto assim como o ensino a distância não explicam a redução tão grande do número de viagens, já que 87% do trabalho e 91% do ensino continuam a se dar de forma presencial. Em relação ao consumo, as viagens por motivo de compras reduziram 23% em comparação com a OD 2017, sendo de 1.014.726 viagens em 2017 e 781.657 em 2023.
O que explica então a crise de imobilidade na cidade? São múltiplos os fatores. O crescimento dos congestionamentos, por exemplo, reforça a crise, já que quanto mais veículos individuais circulam, maior o congestionamento e o tempo de deslocamento, e portanto menor o número total de viagens realizadas. Por esta razão, a utopia de um transporte individual (seja carro, aplicativo ou moto) em uma metrópole como São Paulo jamais dará conta da densidade de viagens necessária para os deslocamentos diários. Somado ao sucateamento do transporte público com baixíssima qualidade, conforto, eficiência e acessibilidade, especialmente os ônibus, não oferecendo alternativa segura e eficiente de deslocamento numa escala e densidade necessária à São Paulo. É uma questão de matemática, mas que infelizmente a política pública teima em não enxergar.
* Pesquisador e pesquisadora do LabCidade, **Professoras doutoras da FAUUSP e coordenadoras do LabCidade