“É muita tristeza, muito descaso do poder público. Eu saí da minha casa exatamente no dia 3 de maio de 2024. Não cheguei a ver a água porque eu fiquei 30 dias longe dela. Quando voltei tinha, nas ruas, dois metros ou mais de altura dos entulhos, das lembranças, das vidas perdidas. Isso nós vivemos e continuamos vivendo.” O desabafo foi feito que moradora do bairro Harmonia, em Canoas, Região Metropolitana de Porto Alegre, Maria Noely Flores Borges, no ato realizado no Parque Eduardo Gomes, próximo a estação Fátima, na tarde deste sábado (3).

Organizado por lideranças comunitárias dos seis bairros atingidos no lado oeste do município: São Luís, Mathias Velho, Harmonia, Mato Grande, Fátima e Rio Branco, a manifestação teve como objetivo lembrar um ano da enchente que devastou mais de 60% da cidade. Esse é o segundo ato realizado em uma semana.
Além das famílias impactadas, a ação contou com a presença de parlamentares gaúchos, entidades sociais como Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Cáritas, Levante Popular da Juventude, Terno de Reis, entre outros.

“Estamos aqui hoje porque foi um lugar onde nos exercitamos, um lugar onde foram depositados todos os resíduos retirados das nossas casas. Resíduos, lixos constituídos de muitas das nossas memórias, fotos, documentos, livros, roupas, objetos, móveis. Nossos animais de estimação, tudo que construímos, ao longo de toda a história, de suor e de muita luta, mas que hoje queremos dar um outro sentido”, afirmou Roseli Pereira Dias, moradora do bairro Fátima e integrante da comissão organizadora do ato unitário.

Borges e Dias são duas das mais de 180 mil pessoas atingidas em Canoas. Durante a manifestação foi lida a carta dos moradores atingidos. Além de dar visibilidade às demandas e angústia dos afetados pela enchente, o ato também homenageou as vítimas da tragédia, e fez um agradecimento a todas as famílias que acolheram os desabrigados.
Entre as principais reivindicações estão a limpeza de galerias e canalizações, reconstrução dos diques e modernização da casa de bombas, ampliação do sistema de proteção contra as cheias na região metropolitana. “Precisamos que o poder público olhe para nós. Espero que os governantes tenham o mínimo de sensibilidade e olhem para o povo pelo menos uma vez na vida, para a gente não passar por outros desastres”, enfatizou Borges.
Medo que ocorra tudo outra vez
Maria da Graça, 68 anos, aposentada, moradora há mais de 40 anos do bairro Cinco Colônias contou que a sua casa ficou mais de 30 dias submersa. Sete meses antes da enchente o marido adoeceu e tiveram que fechar o mini-mercado da família, levando para casa todos os utensílios do comércio como freezers, máquinas de confecção. Quando as águas baixaram tudo foi perdido, causando um prejuízo de quase R$ 100 mil. “Eu tive ajuda de amigos, mesmo assim gastei mais de R$ 40 mil, em reforma da casa”, expôs a aposentada. O marido faleceu em novembro do ano passado.

De acordo com Graça, o bairro era um local de casas bem valorizadas, localizado há cinco quadras do centro de Canoas. Segundo ela, metade dos moradores do bairro atualmente é composta de idosos/aposentados, que reconstruiram suas residências com muita dificuldade. Muitos dos moradores do local só tiveram o auxílio emergencial do governo federal no valor de R$ 5.100.
“Nós reconstruimos abaixo de sacrifício, e como nada está sendo feito na cidade, a gente corre o risco de ter uma outra enchente. E nós vamos ter que abandonar as casas, porque não temos o que fazer. Por ser um bairro pequeno está esquecido, qualquer chuva na Colônia já alaga ruas, o que não acontecia antes. A gente não está vendo nenhuma esperança aqui em Canoas. O que nós queremos do poder público é limpeza do esgoto”, desabafou.

Moradora do bairro Mathias Velho, um dos mais atingidos da cidade, Andréia Carvalho, 54 anos, perdeu tudo, sobretudo, como afirmou, a história familiar. “Agora, passado um ano ainda estou construindo e comprando tudo novamente.” Quando as águas de maio chegaram a sua casa, era de madrugada e havia faltado luz. Tiveram que abandonar a casa deixando tudo para traz, inclusive a gata que fugiu. “A gente sabia que alguma coisa ia acontecer, porque era muita chuva, nunca tinha visto igual. Nunca houve essa possibilidade da gente ser atingido, nunca ninguém falou.”
Carvalho nasceu e cresceu no bairro. Ela e o marido conseguiram voltar para a casa, após ficar 40 dias abrigados com a filha, que mora no centro da cidade. Na volta o cenário descrito por todos aqueles que foram atingidos era de destruição total. “O forrinho do teto estava todo quebrado, o muro e a área haviam caído, tudo desmanchado, mas a casa estava intacta. Depois que baixou as águas, a gente foi limpar, meu marido contratou os pedreiros porque ele tinha o dinheiro guardado para comprar um carro, daí ele botou tudo na casa de novo.”

Integrante do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), a moradora pontuou que como aprendizagem ficou o ensinamento de pensar no próximo. “Minha vida agora está estabilizada porque meu marido tinha um emprego bom, mas meus vizinhos não. Então eu ajudo no MAB. Eu sou coordenadora de um grupo para ajudar meus vizinhos.” De acordo com ela, muitos vizinhos não têm recursos nem para comprar janelas ou portas, e muitas vezes nem para comprar alimentos. O apelo que faz é para que se consertem os diques para evitar que outro desastre aconteça.

Mudanças necessárias
“Em um ano, o povo trabalhador lutou muito pra reconstruir tudo o que perdeu. Mas vemos um tratamento muito diferenciado entre o estado, a União e os municípios. Há que se reconhecer que o presidente Lula colocou recursos de R$ 111 bilhões. Políticas públicas foram estabelecidas. Mas nada mudou em termos de reconhecimento da dimensão ambiental da crise climática. O que está sendo feito é uma luta para recuperar aquilo que se perdeu. Só que nós precisamos mudar os padrões de consumo. A organização urbana, o planejamento urbano, a proteção das áreas verdes, das encostas de rios, toda essa dimensão ambiental não foi trabalhada devidamente no Rio Grande do Sul”, apontou a deputada federal Maria do Rosário (PT).
A deputada estadual Sofia Cavedon (PT) destaca o papel das universidades e comitês técnicos que já possuem estudos aprofundados sobre as bacias hidrográficas do estado. “A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e universidades comunitárias têm muito trabalho e pesquisa sobre isso. Os comitês das bacias do Caí, do Jacuí, por exemplo, já sabem onde deve haver intervenção. Mas o governo estadual está descolado dessa produção de conhecimento. Deveria estar dialogando com os comitês das cidades envolvidas, planejando obras de curto, médio e longo prazo. Ao contrário, desaparelhou e esvaziou essas organizações, desprezando esse saber técnico.”

Cavedon cita, como exemplo positivo, a gestão de São Leopoldo durante a prefeitura de Ary Vanazzi (PT), que, segundo ela, atuava em sintonia com o conhecimento local e técnico. “O que precisamos agora é tensionar para que o governo estadual passe a atuar com as forças e inteligências locais”, defendeu.
Para o vereador Gabriel Gomes Constantino (PT), presidente da Comissão Permanente de Meio Ambiente, Obras, Habitação, Serviços Públicos, Saneamento Ambiental e Resíduos Sólidos da Câmara de Canoas, o cenário um ano após as enchentes ainda é de lentidão e falta de respostas efetivas. “A gente ainda vê muita letargia, muita demora nos projetos e na execução das obras de reconstrução do sistema de prevenção contra enchentes – os diques, as casas de bombas – especialmente pela ausência de repasse de recursos do governo Eduardo Leite. Já existe mais de um bilhão disponível para Canoas, mas os valores ainda não foram liberados”, afirma.
O vereador também aponta falhas na administração municipal. “Já se passaram cem dias da gestão atual e ainda não foi feito nem um contrato de hidrojateamento. As tubulações de esgoto estão todas obstruídas, o que gera pânico na população, porque cada nova chuva já provoca alagamentos”, alerta. Segundo Constantino, os alagamentos agora se espalham por diferentes regiões da cidade, atingindo desde bairros periféricos como Guajuviras até áreas mais nobres, como Moinhos de Vento. “Antes era só o lado oeste. Agora já temos registros de problemas também no leste da cidade.”
O parlamentar destaca o esforço da Câmara de Vereadores em ouvir a população por meio de audiências públicas descentralizadas. “Estamos percorrendo os bairros atingidos neste primeiro semestre, dialogando com as comunidades, apresentando os projetos e cobrando respostas do poder público. Nesses espaços, a população está sendo ouvida não só pela prefeitura, mas também por deputados estaduais, federais e representantes do governo federal.”
Apesar disso, ele vê falhas no processo de reconstrução. “A prefeitura [Canoas] está tocando vários projetos sem muita participação social, e há problemas sérios de gestão. Esses são os primeiros quatro anos da reconstrução da cidade, e eles vão determinar os próximos 10 ou 20 anos. Cada falha, cada equívoco cometido compromete diretamente a vida das pessoas. O prefeito precisa se atentar às urgências do município e adotar uma forma de gestão mais participativa.”
A espera da solução
As lideranças irão construir o Comitê de Moradores Atingidos pela Enchente. De acordo com um dos organizadores do ato unitário, Adair Barcelos, morador do bairro Harmonia e também atingido pela enchente, o número de pessoas fora das suas casas é muito maior do que o número de pessoas em abrigo.
“Uma grande maioria da população mais pobre não voltou para as casas, que são esses 15 a 20% que estão em alguns bairros de casas abandonadas. Pessoas que viviam especialmente em casas de madeira que foram abaladas pelo movimento da água e essas pessoas não tiveram condições de fazer nenhuma melhoria ainda nas suas casas.” Barcelos ainda não conseguiu terminar os reparos em sua casa. “Não tem como explicar essa perda, essa dor que a gente teve e a gente ficar assim desamparado, desassistido. Foi muito duro recomeçar. A gente espera que agora a partir desse movimento consiga buscar transparência e efetividade nos projetos. Nós temos um problema imediato que é desentupir a canalização.”

A Prefeitura Municipal de Canoas informa em seu site que as obras no sistema de proteção da cidade estão sendo realizadas de forma emergencial com recursos próprios nos pontos em que os diques romperam. Para obras em todo o sistema e elevação da cota, aguarda os recursos federais, que só serão liberados quando o governo estadual enviar os projetos.Sobre a questão do aluguel social, a prefeitura informa que o programa Aluguel Social atualmente contempla 1249 famílias. Sendo que 77 contratos são de atendidos do Centro Humanitário de Acolhimento (CHA).
Há um convênio com o governo do estado de cooperação para a construção de 58 casas temporárias. Essas obras estão em andamento no bairro Estância Velha, com previsão de finalizar até 15 de maio. Concomitante, já foram iniciadas as obras de dois empreendimentos de moradias definitivas (200 em Niterói e 200 no bairro Fátima), totalizando 400 unidades habitacionais do FAR da Caixa Econômica Federal. As obras serão finalizadas em até 18 meses.
Das 3 mil unidades habitacionais autorizadas pelo Ministério das Cidades, já foram assinados dois contratos totalizando mais de 1500 unidades para pessoas exclusivamente atingidas pela enchente, com previsão de entrega em 18 meses. Atualmente há 144 famílias, 258 pessoas acolhidas no CHA Recomeço, dentro do Centro Olímpico de Canoas.
O Brasil de Fato RS entrou em contato com a Prefeitura de Canoas para esclarecer os pontos levantados por moradores e autoridades locais. Solicitamos um posicionamento sobre as principais reivindicações, que incluem: a limpeza de galerias e canalizações; a reconstrução dos diques e a modernização das casas de bombas; a ampliação do sistema de proteção contra as cheias na região Metropolitana; além da garantia de participação social nas decisões relacionadas à reconstrução da cidade. Também questionamos o valor dos recursos federais destinados ao município e como esses recursos estão sendo aplicados. Até o momento do fechamento desta matéria, não obtivemos retorno. O espaço segue aberto para manifestação da prefeitura.
