Tragédia sem rosto: quem eram as vítimas da Pousada Garoa?

Na madrugada de 26 de abril de 2024, as chamas que, conforme relatos, começaram em um colchão, se alastraram rapidamente pelas paredes, portas e divisórias de madeira que separavam cada quarto nos três andares da unidade da Pousada Garoa, localizada na Avenida Farrapos, 305, região central de Porto Alegre. O fogo ceifou a vida de 10 pessoas naquela noite. Outra vítima não resistiu aos ferimentos e morreu após mais de uma semana. As marcas permaneceram entre os 15 feridos, que perderam boa parte de suas vidas e de seus pertences no incêndio. 

Em pouco mais de 24 horas após o incêndio, quatro das primeiras vítimas identificadas foram enterradas em um velório coletivo no Cemitério Municipal São João, com a presença apenas de integrantes de movimentos sociais e servidores da Prefeitura. Um ano depois, nas covas, restam apenas os números escritos, já com sinais de deterioração pelo tempo. Uma funcionária da assistência social que preferiu não se identificar descreveu a situação encontrada no quadro 9 do cemitério: “Na verdade, foram enterrados da mesma maneira que o Estado tratava eles”.

“Sepultaram as pessoas em 24 horas, como se quisessem se livrar de corpos, mas essas pessoas têm relações humanas, têm relações familiares. Onde é que estão essas famílias? Se nós não as localizamos, bom, o problema aumenta. É impossível que a gente não tenha no serviço prestado um cadastro mínimo das pessoas, e cadê as suas relações familiares e comunitárias, os vínculos que elas têm? Isso não existe.” – Elton Bozzetto, na Reunião da Comissão de Defesa do Consumidor, Direitos Humanos e Segurança Urbana, em 30 de abril de 2024

Anderson Gaúna Corrêa – Duas chances

Anderson Gaúna Corrêa media cerca de um metro e setenta e tinha cabelos grisalhos. Não foram encontradas fotos dele durante a produção desta reportagem.

Ele completaria 48 anos em outubro de 2024. Natural de Uruguaiana, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, Anderson era filho de Eunice Gaúna e Erwenton Corrêa Filho, mas não mantinha vínculos familiares há muitos anos e evitava falar sobre isso. A mãe e o irmão dez anos mais novo, Paulo Ricardo, ainda moram na capital. Na região da fronteira, Anderson ficava com uma tia, que trabalhava como catadora. Concluiu o ensino médio e trabalhou em diversos empregos informais ao longo da vida, ganhando pouco e enfrentando dificuldades de adaptação. Em 2017, trabalhava no Zaffari no bairro Rio Branco, onde permaneceu por 4 anos, seu tempo máximo em um emprego. Na carteira de trabalho, restaram apenas as palavras “Vendedor pracista”, até terem sido engolidas pelo fogo.

Pacífico, educado e colaborativo. Foi com esses adjetivos que os funcionários da assistência social definiram Anderson, com quem cruzaram nas muitas visitas ao Centro POP II, onde ele recebia seu voucher para dormir na pousada, assim como tratamento psicológico. Como muitas pessoas em situação de rua, ele era diabético e precisou ser encaminhado para tratamento. Durante o período em que esteve no centro, não utilizou drogas ou álcool. 

Ele relatava estar em situação de rua desde fevereiro de 2023. Alguns meses depois, em primeiro de setembro do mesmo ano, adentrou pela primeira vez a unidade da Pousada Garoa, na Avenida Farrapos. No prédio 305, sentiu-se incomodado e amedrontado. Depois de algum tempo, foi seduzido pela proximidade da pousada do “bandeijão”, onde fazia suas refeições, e do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, conhecido como POP, onde era recebido. Adaptou-se por necessidade de ter um teto. 

Na pousada, passava muito tempo na portaria, utilizando o Wi-Fi e conversando com os funcionários. Em outubro de 2023, trabalhou por um breve período na Cootravipa, sem carteira assinada, mas se considerou lento para trabalhar lá. No período da cooperativa, teve a possibilidade de ir para o Abrigo Bom Jesus, mas manteve-se na pousada, ainda encantado com a facilidade de deslocamento entre as refeições e o teto que o abrigava. Foi a primeira vez em que quase escapou do incêndio que tirou sua vida.

Em abril de 2024, Anderson vendia balas no centro da cidade. Neste período, ele procurava emprego incessantemente. No décimo sexto dia do mês em que viria a falecer, Anderson foi chamado pela unidade de Porto Alegre do Sistema Nacional de Emprego (SINE) para ocupar uma vaga de empacotador em um mercadinho próximo. Ele aguardava resposta do estabelecimento. Além da Garoa da Farrapos, ele frequentava o Albergue Acolher 1, na Vila Ipiranga, onde podia tomar banho e se alimentar. No dia 25 de abril de 2024, poucas horas antes de voltar para a pousada, Anderson esteve lá. Poderia ter passado a noite no albergue. Assim, foi a segunda vez que quase escapou das chamas do prédio 305.

Relato de Bruno Martins, porteiro da Pousada Garoa na época:

Ao retornar do albergue, Anderson pediu para trocar de quarto. Foi para o cômodo de madeira sem janelas que seria seu último espaço com vida. E assim, não escapou. Após a troca, Anderson seguiu, já morto, da pousada ao Instituto-Geral de Perícias (IGP), onde foi reconhecido por seus familiares. 

Antes de seu caixão ser guardado em uma gaveta entre os quadros 17 e 12 do Cemitério Municipal São João, o corpo passou pelo salão de velório, acompanhado de seus familiares. Ele foi a única vítima que teve a chance de uma despedida formal. Anderson Gaúna Corrêa viveu por 47 anos. Da morte na Avenida Farrapos, 305, ao túmulo 1897, no fundo do cemitério do bairro Higienópolis, foram pouco mais de 24 horas.

Dionatan Cardoso da Rosa – “Viver com dignidade vivendo dignamente”

Dionatan Cardoso da Rosa / Reprodução: Redes sociais

Nascido em 13 de julho de 1982, Dionatan Cardoso da Rosa tinha 41 anos quando morreu no incêndio da Pousada Garoa, após passar cinco anos em situação de rua. Ele vagava sem um lar, sempre com uma máscara cirúrgica no rosto – herança da pandemia -, tornando-o ainda mais invisível socialmente. Porém, essa não é toda a sua história. 

Dionatan morava com sua esposa, Miriam Celeste Borges, com quem foi casado por sete anos, no bairro Restinga, na Zona Sul da capital gaúcha. Ele trabalhou como gari na Cootravipa até 2017, e afirmava que esse emprego o deixou exausto por 11 anos, sem carteira assinada, e por isso não pretendia voltar. Porém, 2019 foi o ano em que mudou a vida. Afinal, sua companheira faleceu em decorrência de diabetes, mudando toda a realidade de Dionatan e deixando uma ferida incurável em seu peito, que o acompanhou até o fim.  

No entanto, essa não foi a primeira perda significativa em sua vida. A mãe e o pai adotivo de Dionatan faleceram de diabetes e tuberculose respectivamente, quando ele tinha apenas 19 anos. E assim, outra batalha cruzou seu caminho: a depressão. Em um luto interminável e sendo um homem muito recluso por natureza, ele encontrou uma solução rápida: álcool e cocaína. Afundado pela dor de perder a esposa para a mesma doença que sua mãe teve, ele vagou pelas ruas, deprimido e sem amparo. 

Muito mudou em 2022, quando iniciou seus atendimentos com o Centro POP II – Nossa Casa. Após passar três anos desabrigado, encontrou auxílio no centro de acolhimento a pessoas em situação de rua, onde foi encaminhado para a unidade 305 da Pousada Garoa, na Av. Farrapos. No Centro POP, Dionatan iniciou tratamento com um psicólogo e começou a tomar antidepressivos. Ele informou ser natural de Alegrete e ter sofrido bullying durante a infância, o que o tornou uma pessoa ainda mais fechada. Dionatan possuía o ensino fundamental completo e estava sempre em busca de oportunidades de trabalho.

Em julho de 2023, ele finalmente conseguiu um emprego. Trabalhava 12 horas por dia para ganhar 100 reais. O tratamento corria bem, e ele se sentia cada vez mais alegre e disposto a conversar. Foi em agosto do mesmo ano que ele decidiu tirar a máscara. Nesse momento, Dionatan lembrou-se de que poderia viver e não apenas sobreviver. Anunciou sua conversão ao islamismo, passou a frequentar o Centro Islâmico de Porto Alegre e começou a considerar sair da Pousada Garoa. 

Uma semana antes da fatídica noite, havia conseguido um emprego formal como auxiliar de limpeza em um condomínio na Zona Norte e acabava de renovar seu voucher de moradia. Dionatan morreu carbonizado em seu quarto, sozinho. Não havia ninguém sequer para reconhecer o seu corpo. Ele está enterrado no Cemitério São João, no túmulo 156, quadro 9. No site Vakinha, ainda é possível ver seu pedido de ajuda para arrecadar dinheiro e ter moradia própria. Dionatan queria “viver com dignidade vivendo dignamente”, como descreve na solicitação.

João Batista Ebani – Nunca teve casa e hoje tem um túmulo sem nome

João Batista Ebani era um homem alto e magro, com mãos grandes, rosto anguloso e olhos azuis. Um verdadeiro colono de origens alemãs. Sempre usava uma camisa de botão com estampa xadrez e as calças soltas na cintura. Não foram encontradas fotos dele durante a produção desta reportagem.

Nascido em 22 de janeiro de 1960, em Nova Esperança do Sul, João era filho de uma família alemã. Mudou-se para Caxias do Sul, onde viveu por muito tempo, passando por quatro endereços nos bairros Cruzeiro, Esplanada e Rio Branco. Sem laços familiares, vivia sozinho. Aposentado por invalidez e beneficiário do Benefício de Prestação Continuada, ele passou 40 de seus 64 anos na rua. João nunca teve casa. 

Ele gostava de trabalhar com a terra, por isso exerceu a função de trabalhador rural por um longo período. Seu sonho era ir para Brasília, ou para o Rio de Janeiro, viagens que nunca teve a oportunidade de realizar. 

Apesar de ser descrito como uma pessoa difícil de lidar em muitos momentos, João nunca deixou que as dificuldades, carregadas praticamente a vida inteira, tirassem sua alegria. Ele chamava a atenção no ambiente em que estava devido ao porte físico, mas também carregava uma risada extremamente característica – daquelas que “só quem pôde ouvir sabe”. 

Era uma pessoa muito engraçada, de alto astral e frequentadora da Pastoral do Povo da Rua de Porto Alegre. Lá, preenchia o ambiente com seu sorriso, acompanhado por uma dentadura muito maior que sua boca, que escondia a precariedade de sua saúde bucal e mostrava que nunca teve acesso a um luxo como aquele em nenhum momento de sua história. 

Em setembro de 2023, seu caminho cruzou com o endereço da Av. Farrapos, número 305. A Pousada Garoa. Lá encontrou abrigo, mas também o verdadeiro desespero. João não morreu na noite do incêndio. Ele foi encontrado ainda com vida e encaminhado para o Hospital de Pronto Socorro (HPS). No mesmo dia, foi transferido para o Hospital Santa Ana. Faleceu no dia 6 de maio, em decorrência da inalação de fumaça no momento do incêndio. Seu corpo lutou por dez dias para sobreviver, como já havia feito ao longo de toda a sua vida, dia após dia. No dia 26 de junho, dois meses depois da data de sua morte, ele foi enterrado. Ebani está no Cemitério Campo Santo, no túmulo 446, no quadro 1. 

Para chegar ao túmulo de João, é necessário perguntar aos funcionários do cemitério, já que nada indica o caminho. Por telefone, o funcionário da administração do Campo Santo informava que o túmulo “não tem nome, não tem nada”.

João Luís Leal Gomes – Não teve tempo de voltar a estudar

João Luís Leal Gomes / Reprodução: Redes sociais

João Luís Leal Gomes carregava um sorriso característico. Nasceu em Alvorada no dia oito de junho de 1972 e completaria 52 anos se o incêndio não tivesse tirado sua vida. Os passos que o levaram à Garoa naquela madrugada estão marcados por dificuldades, sonhos interrompidos e tentativas de recomeço que nunca se concretizaram.

No final de 2023, João já se hospedava há algum tempo na unidade da rua Sete de Setembro, mas relatava estar insatisfeito com as condições de convivência e de moradia. Conforme seu atendimento no Centro de Referência Especializado de Assistência Social do Centro, Ilhas, Humaitá e Navegantes, muitos furtos aconteciam dentro da Pousada. Além disso, apenas um chuveiro em condições precárias estava disponível para o uso dos moradores. 

Na época, ele relatava fortes dores no braço e afirmava estar tomando medicação sem orientação médica. Trabalhava na Cootravipa, mas sentia-se muito desconfortável por causa do braço machucado.

Após enfrentar conflitos com seus vizinhos, não demorou muito para que João fosse transferido para outro prédio da Garoa, o número 305 da Avenida Farrapos, em fevereiro de 2024, logo depois de ser desligado do seu local de trabalho. 

Encaminhado para procurar atendimento médico, retornou frustrado, com sentimento de negligência. Ele contou que teria sido atendido com descaso, pois o médico negou a cirurgia para o seu braço e não ofereceu medicação apropriada para dor. 

O desejo de recuperar a movimentação total do braço era uma das grandes vontades de João Luís. O propósito de voltar a estudar também era forte. Ele comentava que gostaria de procurar uma oportunidade por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA). 

No dia cinco de março de 2024, João Luís chegou ao Centro Pop II – Nossa Casa para receber o café da manhã e tomar um banho. Esse é o último registro que se tem dele antes da tragédia na Pousada Garoa. Agora, está sepultado na catacumba 1838, entre os quadros 17 e 12, ao fundo do cemitério.

Julcemar Carvalho Amador – Sonho de ser militar

Julcemar Carvalho Amador / Reprodução: Redes sociais

Julcemar Carvalho Amador era o mais jovem dentre os falecidos identificados. Nasceu em 18 de dezembro de 1984 e estava na metade de seus 39 anos de vida quando morreu dentro do prédio. Conforme os registros da Assistência Social, ele estava há menos de três meses em situação de rua. Embora fosse de Porto Alegre, viveu boa parte da vida em São Jerônimo, na região carbonífera, a cerca de 60 quilômetros da Capital gaúcha, onde parte da família ainda reside. Era filho de Alda Delmara Carvalho Amador e Ari de Souza Amador, ambos falecidos. A mãe foi acometida por um infarto, e o pai, por um câncer.

No município carvoeiro, morou em logradouros tradicionais, como a Avenida Maurício Cardoso e a Rua General Osório, no centro da cidade. Ele completou o ensino médio no Instituto Estadual de Educação, também conhecido pelos moradores de São Jerônimo como “Ginásio”. 

Sua vida profissional foi marcada por diferentes empregos em diferentes cidades. Entre 2006 e 2008, trabalhou no supermercado Bonato, o mais popular da região. Entre 2009 e 2012, passou por uma indústria de cerâmica em Charqueadas, cidade vizinha. Em 2014, começou a trabalhar em Cachoeirinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Lá, teve dois empregos em três meses. 

Chegou a Porto Alegre em 2019 motivado para procurar trabalho. Seu primeiro endereço foi no bairro Mário Quintana, onde trabalhou como açougueiro em mercadinhos, sempre recebendo à margem do salário mínimo, como em todos os empregos anteriores. Em determinado momento, desempregado, retornou para São Jerônimo e precisou de apoio psicológico. Passou um período internado no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do município de Montenegro. Pouco depois, retornou a Porto Alegre, com vínculos familiares rompidos, inclusive com os dois filhos que deixou na região carbonífera. 

Seu primeiro contato com a Pousada Garoa foi na unidade Riachuelo, cujo aluguel ele conseguia pagar com auxílio do Bolsa Família que recebia. Mais tarde, mudou-se para uma casa alugada na rua Coronel Vicente, mas acabou ficando sem dinheiro e entrou em situação de rua, passando a maior parte dos dias na rodoviária de Porto Alegre.

Após isso, conseguiu o voucher para a Pousada Garoa, localizada na Rua Jerônimo Coelho, mas em algum momento do início de 2024, foi transferido para a unidade da Farrapos, 305. Lá, marcou o ex-porteiro Bruno Martins e os demais moradores por dizer ser militar condecorado, empresário e candidato a vereador. Familiares recordam que ele tinha o sonho de se tornar militar. “Ele falava que queria ser vereador, mas ele vivia reclamando das condições da pousada. Ele reclamava muito disso”, relembra o ex-porteiro sobre a personalidade de Julcemar. Assim, a causa da sua morte foi em decorrência exatamente desses problemas que o incomodavam todos os dias. Ele foi mais uma vítima da situação precária que os moradores da Garoa precisavam enfrentar. Os sonhos não se tornaram realidade. Agora, ele ocupa mais um túmulo no Cemitério São João, que é identificado apenas pelo número 169.

Túmulo de Julcemar Carvalho Amador, identificado apenas pelo número 169 / Pedro Pereira/Lab J

Lenita Aparecida Scheleck – O desejo da casa própria

Lenita Aparecida Scheleck / Reprodução: Redes sociais

Lenita Aparecida Scheleck, de 67 anos, era natural de Porto Alegre e morava há pelo menos quatro anos na Pousada Garoa, por conta própria, ocupando o quarto 13, no terceiro andar do prédio 305 da Avenida Farrapos.

Seu irmão, Marcelo Scheleck, que também morava na Garoa, relembra que ela não queria sair de lá e que seu desejo era ter uma casa própria, “mas ela era muito teimosa”, afirmou. Hoje, ele resume com descontentamento o desfecho dessa busca: “A casa própria dela agora é o túmulo no Cemitério São João”, referindo-se à sepultura da irmã na catacumba 1972, entre os quadros 17 e 12.

Durante o seu depoimento na CPI da Pousada Garoa, no dia 14 de abril, Marcelo descreveu a irmã como uma mulher obesa, com dificuldade de mobilidade, que também tinha problemas de saúde mental e tomava remédios para dormir. Depoimento de Marcelo Scheleck, irmão de Lenita, na Comissão Parlamentar de Inquérito da Pousada Garoa.

Apesar disso, aparentava ter hábitos ativos que marcavam sua presença no local. O ex-porteiro Bruno recorda que ela saía do prédio sempre pela manhã e retornava à noite, precisando geralmente de ajuda para subir até o quarto. “Quando voltava, ela trazia um pastel para mim, todo dia, sem exceção”, lembra. 

Dona de dois gatos, era rotina vê-la procurando “pelos seus filhos” toda semana, já que os animais costumavam fugir do quarto e sumir por alguns dias. Lenita ainda mantinha um cuidado especial com as plantas do prédio, dando alguma cor ao local ao regá-las, além de orientar o Bruno a fazer o mesmo: “Se via que as plantas estavam secas, ela brigava comigo”.

Lenita tinha ensino médio completo e, durante a vida, trabalhou em algumas das funções descritas pela Classificação Brasileira de Ocupações 5199 – grupo que inclui profissionais como auxiliares de limpeza, instaladores de cartazes, guardadores de veículos, entre outros.

Filha de Izolina Costa Scheleck e Podalirio Scheleck, ela também tinha duas outras irmãs. Não mantinha muito contato com a família, mas deixou marcas na memória do lugar onde viveu seus últimos anos – entre gatos, plantas, pastéis e uma teimosia, que, talvez, fosse só outro nome para resistência.

Maribel Teresinha Padilha – Um quarto cheio de objetos e um sonho não realizado

Maribel Teresinha Padilha era uma senhora baixa, de pele branca e excesso de  peso. Seu cabelo grisalho denunciava a passagem do tempo. Não foram encontradas fotos dela durante a produção desta reportagem.

Ela tinha 63 anos, nasceu em 24 de junho de 1960 e era natural de Porto Alegre. Seus pais são Maria Horistalina Oliveira Silva e Izidoro Padilha. Ela nunca terminou os estudos, tendo concluído apenas o ensino fundamental. Tinha traços acumuladores e seu quarto na unidade 305 da Pousada Garoa estava repleto de objetos.

Poucos moradores da pousada simpatizavam com ela. Era descrita como uma senhora muito séria, que levava seus dias com uma cara fechada e podia ser encontrada em “encrencas”, pois gostava de entrar em confusões com frequência. Apesar da fama de encrenqueira, as raras conversas com a dona Maribel eram sempre muito leves e agradáveis. Relato de Bruno Martins, porteiro da Pousada Garoa na época.

Em sua última noite de vida, Maribel desceu no saguão da pousada por volta das oito horas da noite para conversar com o ex-porteiro, Bruno. Ela falava com felicidade e animação sobre o sonho de voltar a estudar e ingressar em uma universidade no futuro. Naquela mesma tarde, havia ido a uma escola para se informar sobre o processo de início do programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Maribel morreu queimada naquela mesma noite, durante a madrugada. Foi dormir em seu quarto abarrotado de coisas enquanto pensava em seu sonho, que estava quase se realizando, e nunca mais acordou. Hoje, está enterrada sem identificação no Cemitério São João, no túmulo 173, no quadro 9.

Silvério Roni Martin – Uma trajetória marcada pela rua, pela dor e pelo riso

Silvério Roni Martin já tinha uma certa idade, mas aparentava ser ainda mais velho, com traços típicos de uma possível descendência alemã. Tinha a pele branca, que ficava vermelha com frequência. Seu cabelo era acinzentado e não era muito alto, mas tinha o estilo de um tradicional colono. No único registro visual encontrado de Silvério, ele aparecia após ter passado por uma agressão física. A reportagem optou por não usar esta imagem para representá-lo.

Era comum encontrar Silvério nos arredores do Viaduto da Conceição, próximo à rodoviária. Ele costumava passar o tempo por lá e dormir em alguns momentos. No entanto, a vivência nas ruas já fazia parte da sua história. 

Em 2021, ele ficou em situação de rua por três meses no leste do estado, mais precisamente em Tramandaí. Conforme explicou à Prefeitura na época, teria recebido uma proposta de trabalho na cidade, mas foi enganado e não pôde ir embora, passando a morar sob uma arquibancada. Após sofrer agressões, a Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social de Tramandaí resgatou Silvério e o reencontrou com a mãe, Marga Martin.

Desde então, morou com ela em Vale do Sol, cidade que fica a cerca de 200 km da capital. Silvério nasceu em Santa Cruz do Sul, na área em que hoje foi emancipada como Vale do Sol. Mais tarde, relatou aos psicólogos do Centro Pop II – Nossa Casa que teria sido expulso de casa por volta de 2023. Quanto a outros vínculos familiares, perdeu o pai, Armando Martin, em 2015, e tinha dois filhos, mas não mantinha contato com eles há oito anos.

Seu sotaque italiano sempre chamava atenção. Ele se referia, por exemplo, aos espaços de doação de refeições, como “bandejons”. Também costumava andar mancando, devido a um joelho machucado. Silvério contava que a dificuldade de andar veio após sofrer um acidente de trabalho como pintor, quando caiu de uma altura de oito metros. Bruno, ex-porteiro da Pousada, lembra de Silvério como “um cara sensacional, muito inteligente, que estava sempre animado e todo dia contava uma piada para fazer todo mundo rir”. 

Sua história com a Pousada Garoa, na Avenida Farrapos, começou em 2023. Ele negou duas vezes receber o voucher, pois não gostava de estar próximo de usuários de drogas. Tempo depois, chegou a implorar pela hospedagem, porque estava cansado de ficar nas ruas. A primeira vez que entrou na Garoa, não passou sequer um dia por não gostar do ambiente. Ele relatou a um profissional de psicologia que “a pousada fedia a mijo e não tinha diferença da rua”. 

Em janeiro de 2024, ele foi para Florianópolis para trabalhar como pedreiro, mas passou somente um mês lá, pois suas condições de saúde dificultavam a rotina. Além dos problemas de mobilidade, Silvério também tinha suspeitas de que poderia ter Alzheimer ou demência.

Túmulo de Silvério Roni Martin, identificado apenas pelo número 154 / Alana Borges/Lab J

Ao voltar para Porto Alegre, começou a morar na Garoa, após pedir mais uma vez o voucher, optando pela unidade da Farrapos, que era próxima de um bandeijão. Quando faleceu, aos 59 anos, Silvério morava em um quarto no térreo havia cerca de dois meses. Atualmente, ele ocupa o túmulo identificado apenas pelo número 154, no quadro 9 do Cemitério São João.

Esse é o capítulo final da história de Anderson Gaúna Corrêa, Dionatan Cardoso da Rosa, João Batista Ebani, João Luís Leal Gomes, Julcemar Carvalho Amador, Lenita Aparecida Scheleck, Maribel Teresinha Padilha e Silvério Roni Martin. Suas mortes foram noticiadas exatamente assim, apenas com menção aos seus nomes, em lista corrida divulgada pelo Instituto-Geral de Perícias, sem qualquer detalhe sobre suas vidas. Os noticiários, ocupados com um cotidiano visível, escolheram olhar para a lista e somente indicaram cada um dos falecidos entre vírgulas e pontos.

Em vida, eles já eram invisíveis nas ruas. Mesmo um ano depois do incêndio, o maior que Porto Alegre viu em 48 anos, eles continuam sem ser vistos. Este texto parte do esforço coletivo de reportagem, cujo objetivo é recordar, por meio de relatos de pessoas que cruzaram de alguma maneira com cada um dos falecidos, que houve muita vida antes da morte.  

Além dos oito falecidos aqui mencionados, lembramos que três pessoas mortas não tiveram os nomes divulgados. Uma delas foi identificada, mas o nome foi protegido. As outras duas outras vítimas fatais continuam indigentes de dignidade. Um ano depois, as chamas da Pousada Garoa não foram apagadas para quem vive à margem.

Túmulos das vítimas com sinais de deterioração no Cemitério Municipal São João / Alana Borges/Lab J

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