A cerca de 140 quilômetros de Brasília, no município de Água Fria de Goiás (GO), 700 famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocupam uma área da Fazenda São Paulo. O território, que já foi palco de outras lutas pela reforma agrária, foi retomado no dia 7 de abril como forma de resistência à grilagem e à luta pelo direito à terra.
Neste sábado (3), o acampamento Valmir Mota Keno, foi palco de um Ato Político em defesa da reforma agrária e contra o trabalho escravo, reunindo militantes, organizações populares, movimentos sindicais, partidos e parlamentares. A mobilização buscou denunciar as violações de direitos no campo, como a grilagem de terras públicas, a exploração de trabalhadores, e os impactos socioambientais causados pelo agronegócio.
De acordo com o Marco Baratto, da coordenação do MST DF e Entorno, a região onde está localizado o acampamento é marcada historicamente pelo coronelismo, pela concentração fundiária e pela violência no campo. “A gente está disputando com um modelo político e de produção que não gera comida, não gera vida, nem cultura. É o modelo do agronegócio que destrói tudo ao redor e se sustenta com trabalho escravo e crime ambiental”, destaca.
Para o movimento, a Fazenda São Paulo, vizinha ao acampamento, é símbolo dessa realidade. Em 2023, uma ação de fiscalização resgatou 84 trabalhadores em condições análogas à escravidão na fazenda. Além do flagrante de trabalho escravo, a propriedade tem ligação com um crime que chocou o país, conhecido como a Chacina de Unaí. Boschini, atual administrador da fazenda, é genro de Antério Mânica, condenado como um dos mandantes do assassinato de três auditores fiscais do trabalho e um motorista, em 2004, durante uma fiscalização rural em Minas Gerais.
Além do enfrentamento direto às violações do agronegócio, o MST destaca também o embate com o governador do estado. “A gente organizou essa ocupação enfrentando o governo de [Ronaldo] Caiado, que disse nas mídias que, em Goiás, não teria Abril Vermelho, que o estado de Goiás não teria ocupação. Nós ocupamos, estamos resistindo, vai fazer 30 dias, com o objetivo de conquistar esse território para que possamos desenvolver e produzir alimento saudável, não só para a região do nordeste de Goiás, mas, sobretudo, para os centros urbanos”, observa Baratto.

Retomada
Assentado no Projeto de Assentamento Filhos da Terra, Valmir Camilo, da coordenação do MST DF e Entorno, conta que a disputa pelo território em Água Fria é antiga e a retomada da área cumpre uma função de denúncia e também de defesa das conquistas da reforma agrária.
“Foi uma luta de anos debaixo da lona. Por isso, não aceitamos que esse território, conquistado há 30 anos com muita luta, volte a ser latifúndio. O agronegócio aqui é violento, é criminoso. É preciso romper com essa lógica. Nosso objetivo é assentar entre 1.000 e 1.200 famílias nessas terras. Queremos transformar essas terras por meio da produção de alimento saudável para a mesa do trabalhador e para o povo brasileiro”, declarou.
Ele ressalta que o ato no território é um marco histórico para a luta camponesa na região. “Reunir tantos companheiros e companheiras que lutam em defesa da classe trabalhadora proporciona ao povo acampado a visão de que, juntos, somos fortes. E de que só vamos realizar a reforma agrária com a união do campo e da cidade.”
Presente no ato, o deputado estadual Mauro Rubem (PT-GO), também reforçou a importância da mobilização para a retomada de parcelas de terra que foram adquiridas de forma ilegal. O parlamentar falou ainda sobre os impactos da expansão do agronegócio, principalmente nas áreas do Cerrado.

“O agronegócio é extremamente agressivo, destrói o meio ambiente e não gera benefícios reais para a sociedade. Atende apenas aos interesses de um grupo restrito de famílias, proprietárias de grandes empreendimentos agropecuários. É um modelo atrasado”.
Para o parlamentar, a destruição ambiental provocada pelo agronegócio é incalculável. “Afirmar que esse tipo de uso da terra é sustentável, especialmente no Centro-Oeste, coração das águas do Brasil, é negar a realidade.
Futuro
O deputado também reafirmou a expectativa de que o território retomado se volte à produção agroecológica. “Acreditamos que esta área será novamente destinada à produção de alimentos saudáveis. E esperamos que, em breve, também as terras da Fazenda São Paulo entre na lista para fins de reforma agrária e sejam destinadas ao povo. Tenho certeza de que, com a atuação firme de dois elementos fundamentais — os movimentos populares, como o MST, fazendo o trabalho de base, e um governo sensível, que tem avançado cada vez mais na pauta da reforma agrária — conquistaremos novas vitórias para o campo brasileiro.”

A superintendente regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Distrito Federal e Entorno, Cláudia Farinha, destacou que a mobilização popular é importante para o avanço da reforma agrária e confirmou que o órgão está atuando para regularizar a área. Segundo ela, há um processo em curso para o eventual cancelamento dos títulos vinculados à Fazenda São Paulo para sua destinação à reforma agrária.
Ela explicou ainda que o Incra está realizando a identificação e análise de imóveis passíveis de aquisição, com vistas à criação de novos assentamentos ou à ampliação dos já existentes. “No momento, está em avaliação a viabilidade técnica e jurídica para a abertura de processo de desapropriação ou aquisição por outras modalidades previstas em lei.”
De acordo com a superintendente, a área da Fazenda São Paulo integra o escopo do Programa Nacional de Reforma Agrária, especialmente no marco do Programa Terra da Gente, lançado pelo Governo Lula em 2023. “A partir desse programa, o Incra pode adquirir áreas para implementação de assentamentos, garantindo o acesso à terra para famílias acampadas. Em breve, será realizado o cadastramento das famílias por meio da Plataforma de Governança Territorial – PGT Campo, ferramenta essencial para a seleção dos beneficiários” afirmou.
Direito à terra
Para Samuel Marrara, da Assessoria Jurídica Universitária Popular (Ajup), a luta pela terra além de ser uma reivindicação legítima, é uma condição essencial para a construção de uma democracia justa e sustentável.
“A reivindicação da terra, além de ser um direito garantido constitucionalmente, é uma prerrogativa para uma democracia efetiva, especialmente em um país com a dimensão territorial e a capacidade produtiva do Brasil”, afirma.
Ele ressalta que a reforma agrária hoje assume uma dupla dimensão: além de assegurar igualdade e subsistência para quem vive da terra, é também uma medida urgente de preservação ambiental e de sobrevivência coletiva. “As catástrofes climáticas causadas pelo modelo do agronegócio — com desmatamento, queimadas e uso de venenos — evidenciam que esse sistema, orientado pelo lucro imediato, ameaça não só os territórios, mas toda a humanidade.”
Segundo Marrara, romper com esse modelo é urgente. “A superação desse modelo é essencial para a sobrevivência de todos nós. Para que o Brasil não repita tragédias como as que ocorrem no Rio Grande do Sul, é preciso enfrentar o poder político e financeiro do agronegócio e avançar em um projeto popular, ecológico de superação desse modelo atrasado e nocivo. Para ele, a reforma agrária é o primeiro passo para que o Brasil possa, de fato, começar a consertar seus problemas estruturais e caminhar rumo a um futuro mais igualitário e sustentável.

A ato político contou ainda com a presença do deputado distrital Gabriel Magno (PT-DF), da vereadora de Formosa Nilza dos Santos (PT), representantes da Secretaria-Geral da Presidência da República (SGPR), do Partido dos Trabalhadores de Goiás (PT-GO), da Associação dos Servidores da Reforma Agrária (Assera), da Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (Cnasi), entre outras.
Homenagem
O acampamento foi batizado com o nome do militante do MST, Valmir Mota de Oliveira, conhecido como Keno, assassinado em 21 de outubro de 2007. O crime ocorreu em Santa Tereza do Oeste (PR), a mando da transnacional suíça Syngenta, produtora de agrotóxicos e transgênicos. Keno foi assassinado, aos 34 anos, com um tiro durante ocupação do MST e Via Campesina para denunciar crimes ambientais em pesquisas realizadas pela empresa, nas proximidades do Parque Nacional do Iguaçu.
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