Morte no HSVP: relatório detalha caso, aponta “contradição” em falas da direção e traz novos relatos de tortura

Relatório de diligência realizada no Hospital São Vicente de Paulo (HSVP) um dia após a morte de uma paciente de 52 anos aponta novos detalhes sobre o óbito e as condições de funcionamento da instituição. Segundo o documento, ao qual o Brasil de Fato DF teve acesso, no primeiro momento da visita, funcionárias negaram que “qualquer intercorrência ou fato relevante” teria acontecido no hospital nos últimos dias.

O texto também indica contradições no discurso da direção do HSVP sobre a morte, além de trazer novos relatos de tortura por parte das pessoas internadas no hospital psiquiátrico localizado em Taguatinga, região administrativa do Distrito Federal. Uma delas teria ouvido da equipe da instituição que seria a “nova Raquel“, em referência à jovem de 24 anos encontrada morta no local na noite de Natal de 2024.

A diligência no HSVP foi realizada no dia 23 de abril com o objetivo de confirmar uma denúncia de morte recebida pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) no dia anterior e de verificar as mudanças dos protocolos assistenciais após a morte de Raquel França.

Além da coordenação da Comissão, que é presidida pelo deputado distrital Fábio Felix (Psol-DF), participaram da visita representantes do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, do mandato do distrital Gabriel Magno (PT-DF), do grupo Psicologia e Ladinidades/Saúde Mental e Militância no DF (UnB) e do Fórum Revolucionário Antimanicomial do DF. Também acompanharam a diligência a presidenta do Conselho Regional de Psicologia (CRP 01/DF) e os deputados federais Erika Kokay (PT-DF) e Pastor Henrique Vieira (Psol-DF), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Luta Antimanicomial da Câmara dos Deputados.

“Tudo normal”

Ao chegar ao HSVP, a equipe que realizou a diligência foi recebida por duas enfermeiras da instituição. Ao serem questionadas sobre a rotina do hospital nos últimos dias, elas teriam dito que “tudo estava normal, sem qualquer ocorrência atípica”. O relatório também aponta que a instituição apresentava “funcionamento regular”.

Foram outras pacientes do hospital que relataram ao grupo a ocorrência de uma morte. A equipe conversou com a mulher que encontrou Eva de Oliveira, de 52 anos, desacordada no chão do banheiro, no dia anterior à visita, 22 de abril. Segundo a paciente, ela encontrou Eva caída de cabeça para baixo em frente ao vaso sanitário. Havia sangue onde Eva bateu com o rosto no chão.

Após o depoimento da paciente, a equipe de saúde do HSVP confirmou a morte e deu mais detalhes sobre as condições clínicas de Eva. A mulher de 52 anos chegou ao Pronto-Socorro do hospital no dia 18 de abril, “com agitação psicomotora acentuada, muito magra e com quadro de sofrimento mental”. A paciente também apresentava um quadro de hipocalemia (deficiência de potássio) e se recusava a comer.

Segundo o relatório, ciente do quadro clínico de Eva, potencialmente grave, a equipe decidiu mantê-la no hospital. No primeiro momento, ela permaneceu em monitoramento na Unidade de Procedimentos Especiais (UPE). Na véspera da morte, dia 21, a paciente foi alocada em um dos quartos do Pronto Socorro.

Após ser acionada por uma paciente, a equipe de saúde do HSVP encontrou Eva “com ausência de pulso e respiração, com cianose nas extremidades e pele fria”, às 1h53. De acordo com as informações do relatório, obtidas a partir do prontuário de Eva, ela foi levada à UPE onde dois médicos de plantão realizaram manobras de reanimação cardiopulmonar. No entanto, a paciente não resistiu e teve óbito declarado às 2h07 da madrugada do dia 22 de abril.

Falhas

A decisão do hospital de admitir e manter Eva no local foi questionada pela equipe que realizou a diligência: “Considerando que Eva já tinha sido internada no HSVP, sua faixa etária e a condição clínica apresentada, bem como o fato de que não estava se alimentando e em situação de fraqueza e magreza, questionamos: por que ela não foi encaminhada ao Hospital Geral?”.

De acordo com os critérios da Secretaria de Saúde do DF (SES-DF), o encaminhamento de pacientes com questões de saúde mental para hospitais gerais, como o serviço de psiquiatria do Hospital de Base, deve acontecer, entre outros fatores, em caso de adultos com particularidades clínicas. Uma dessas condições clínicas apontadas pela Nota Técnica n.º 1/2022 – SES/SAIS/COASIS/DISSAM é a “recusa a se alimentar ou hidratar por mais de 24 a 48 horas”, que era o caso de Eva.

Além disso, a mesma nota técnica afirma expressamente que o HSVP só pode receber pacientes entre 18 e 60 anos incompletos que não apresentem essas particularidades clínicas.

“Uma vez que se decidiu, em provável desacordo à Nota Técnica da Secretaria de Saúde, internar a paciente, questionamos: já que ela estava magra e sendo medicada com psicotrópicos, por que não foi mantida em observação detida da equipe? Por que mais uma paciente supostamente encontrada por outras internas em tão pouco tempo desde a morte de Raquel?”, questiona o relatório da diligência.

Além disso, o grupo responsável pela visita considera “preocupante” a ausência de comunicação explícita sobre o falecimento da interna, bem como a demonstração de desconhecimento do caso por parte da direção do hospital. Para a equipe, a situação evidencia “possíveis falhas na gestão da informação, na transparência institucional e na adoção de medidas preventivas e de responsabilização”.

O que diz a direção

O relatório da diligência aponta que a direção do HSVP apresentou um “discurso contraditório” em relação à morte de Eva. Em um primeiro momento, a direção afirmou que o óbito teria sido uma “decorrência da condição de saúde” da paciente. No entanto, ao ser questionada em relação à razão do não encaminhamento de Eva ao hospital geral, tendo em vista o quadro clínico, a direção afirmou que, segundo avaliação da equipe de saúde, ela tinha condições clínicas de ser internada no HSVP.

“Dessa forma, a um só tempo, a direção alega que as condições clínicas de Eva seriam graves o suficiente para levar ao óbito – e que não eram graves o suficiente para ela ser encaminhada ao serviço adequado para tratar esse quadro clínico, que seria um hospital geral”, afirma o relatório.

Em conversa com a comitiva, o diretor da unidade, Cassiano Teixeira de Morais, afirmou que todas as medidas cabíveis foram adotadas pela equipe técnica após Eva ter sido encontrada no banheiro. Segundo o relatório, ele também afirmou que a família da paciente não teria requisitado a autópsia, e que a equipe do hospital teria os “convencido” a encaminhar o corpo para o Instituto Médico Legal (IML). A versão foi contestada pelos familiares, de acordo com o relatório.

Outras inconsistências na fala do diretor foram apontadas como motivo de “preocupação” por parte do grupo que efetuou a diligência. Morais teria afirmado várias vezes que desconhecia o caso de Eva e que não teria acessado o prontuário da paciente, mesmo tendo transcorrido mais de 24h desde seu falecimento.

A equipe também questionou o Morais em relação às mudanças estruturais ou revisão de protocolos, exigidos após a morte de Raquel França, em dezembro. Segundo o relatório, o diretor e parte da equipe afirmaram que foram realizadas “poucas alterações”, dentre elas o estabelecimento de um “Protocolo de Óbito”, do qual, no entanto, a direção não foi capaz de detalhar os procedimentos previstos.

O afastamento imediato da direção do HSVP, que já havia sido pedido à Secretaria de Saúde após a morte de Raquel, foi novamente recomendado pela equipe da diligência.

Tortura

Durante a visita do dia 23 de abril, a comitiva também conversou com outras pessoas internadas no HSVP que relataram que teriam sofrido tortura na instituição. Uma das pacientes teria chegado a afirmar “com riqueza de detalhes” que durante uma contenção mecânica, teria sido sufocado por um enfermeiro com um pano colocado nas vias aéreas. Ela também disse que a equipe teria dito que ela seria “a nova Raquel”, referindo-se ao fato de que a Raquel França era amarrada com frequência no hospital. 

O relatório destaca que a situação encontrada no HSVP durante a diligência reitera “novamente, o caráter asilar” da instituição. “A rotina de ócio e medicalização também foi bastante reiterada pela totalidade de internas e internos entrevistados, com ausência ou insuficiência de alternativas assistenciais terapêuticas. Somam-se a isto situações de pessoas institucionalizadas há anos, e de pessoas em situação de alta que ainda estão no HSVP por falta de medicação ou de outros serviços na rede de atenção para acolhê-las”, conclui o texto.

Ao Brasil de Fato DF, o deputado Pastor Henrique Vieira afirmou, após a diligência, que o hospital se assemelha a uma “prisão”. “Não há projeto terapêutico, tampouco qualquer proposta de ocupação criativa do tempo. Durante a visita, uma pessoa relatou que, após tomar café, vai para o banho de sol — ou seja, até a linguagem reproduz a lógica prisional. Ouvimos denúncias graves de tortura, incluindo relatos de enforcamento”, apontou.

Recomendações

O fechamento da porta de entrada do HSVP, o afastamento imediato da direção do hospital e a implementação de medidas para expansão da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) no DF foram reiteradas pela equipe de diligência. Além dessas recomendações, que já foram feitas à SES-DF no relatório da vistoria realizada em janeiro, após a morte de Raquel, o grupo fez novos pedidos.

O documento exige que o Governo do Distrito Federal (GDF) realize reformas estruturais e de recursos humanos para transformar o HSVP em Hospital Geral e que a SES-DF, o Ministério Público (MPDFT) e o Tribunal de Contas do DF (TCDF) requisitem informações ao hospital quanto aos protocolos adotados em casos de óbito de pacientes.

O relatório também faz recomendações à nível federal e pede que o Ministério da Saúde, por meio do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (DenaSUS), realize uma auditoria na unidade. Ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o grupo sugere a investigação dos relatos de tortura e abusos cometidos durante dos procedimentos de contenção mecânica no HSVP.

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