218 toneladas de lixo são retiradas de casas de acumuladores da cidade de SP em 2023; influencers fazem faxinas voluntárias


Em 2022, foram registrados 305 casos para tratamento na rede pública da capital paulista. No ano passado, 321 novos casos foram cadastrados na rede de saúde e estavam sendo acompanhados pela Secretaria Municipal da Saúde, um aumento de 5%. Casa visitada por influenciador do ramo de limpezas
Diárias do Gui/Reprodução
Roupas amontoadas, centenas de potes, animais mortos e até pedras fazem parte dos cenários insalubres em que vivem pessoas com indícios do transtorno de acumulação, a condição caracterizada pela dificuldade em descartar pertences.
No ano passado, a prefeitura removeu 218,54 toneladas de resíduos de pessoas em situação de acumulação. No ano de 2022, foram tiradas 426,09 toneladas.
Ao g1, a Prefeitura de São Paulo informou que, em 2022, foram registrados 305 novos casos de acumuladores. Em 2023, foram 321, o que representa um aumento de 5%. Todos estavam sendo acompanhados pela Secretaria Municipal da Saúde, por meio da Política Municipal de Atenção à Pessoa em Situação de Acumulação, instituída na cidade em 2016.
Os “novos casos” cadastrados na prefeitura não representam o início da situação de acumulação, mas o ano em que a pessoa foi inserida no programa municipal (saiba mais abaixo).
Em trabalho paralelo ao poder público, influenciadores digitais recebem dezenas de e-mails por dia com pedidos de ajuda de conhecidos de acumuladores compulsivos. Influencers como Guilherme Gomes e Ellen Milgrau, que estão à frente de casos na cidade de São Paulo e municípios vizinhos.
Mansão na Zona Norte de SP
Casa na Zona Norte de SP de acumuladora foi pichada
Carlos Henrique Dias/g1
Uma mulher de 43 anos moradora de uma mansão na Zona Norte de São Paulo acumulava objetos por mais de três anos, segundo relatos de vizinhos. Ela morava no imóvel com animais de estimação. A piscina sem tratamento era mantida cheia, e a água tinha um tom esverdeado.
O g1 esteve no endereço, repleto de pichações contra a proprietária. A moradora foi levada para receber tratamento. Os animais, retirados por ativistas. Segundo a Secretaria Municipal da Saúde, o caso é acompanhado por uma Unidade Básica de Saúde, um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) e uma Unidade de Vigilância em Saúde (Uvis) da região desde o ano passado.
Foram feitas cinco visitas por agentes no imóvel, sendo a última neste mês. Segundo a prefeitura, as equipes deram orientações de medidas para a redução do acúmulo e prevenção de doenças e agravos à saúde.
Apenas na casa, que tem três andares, quintal com piscina e garagem, foram retiradas 13,8 toneladas de resíduos. O material coletado pela concessionária no local foi levado ao aterro Caieiras, por se tratar de resíduo domiciliar.
‘Vaquinhas’, sabão e insalubridade
O influenciador Guilherme Gomes ficou conhecido no país pelo “Diárias do Gui”, onde mostra as faxinas em casas com sujeira extrema desde 2020. Ao g1, o amazonense que mora atualmente no estado de São Paulo contou que recebe de 10 a 15 pedidos de ajuda por dia, a maioria de São Paulo e Rio de Janeiro. Seu trabalho é realizado com o apoio de voluntários e de doações, por meio de campanhas de arrecadação.
Um dos últimos casos que viralizou foi em Diadema, na Grande São Paulo. A mãe e quatro crianças dormiam na casa cheia de fezes, roupas e baratas pelo corpo. O registro chocou quem assistiu e viu a limpeza com reforma do ambiente.
“A gente faz uma filtragem [dos e-mails]. Eu e a minha produtora checamos os casos. Nos mais extremos que chegam para a gente, a gente faz uma visita, vai lá para confirmar se de fato é aquilo. Tem muita gente oportunista, e a gente já quase sofreu um golpe.”
Guilherme Gomes é influenciador e faz limpezas em casas de acumuladores
Diárias do Gui/Reprodução
Geralmente, é a família do acumulador que procura ajuda, explica Gui. Atualmente, ao menos três casos estão em andamento na cidade de São Paulo.
Em Itaquera, na Zona Leste, uma mulher que sofre com depressão depois do diagnóstico de câncer de mama, foi demitida do emprego e caiu numa crise financeira.
“Ela começou a fazer o tratamento do câncer, ficou muito mal e não conseguiu limpar a casa, fazer mais nada do que ela fazia antes.”
Entre as situações que se deparou, Gui já encontrou ossos de animais mortos, garrafas com leite estragado há tempos, bonecas destruídas e pedras grandes no segundo andar de um imóvel que a equipe não sabe como a moradora conseguiu transportá-las.
“Essas pessoas que vivem assim, elas não vivem. Elas vegetam, porque a pessoa perde o total sentido da vida, de tomar banho, escovar o dente. A gente está conseguindo sair desse preconceito de que pessoas que têm casas sujas são pessoas desleixadas e porcas. Não. A gente está conseguindo tirar o foco disso e mostrar que isso realmente é uma doença.”
O tempo dedicado a cada caso varia. Nos mais graves, os seguidores ajudam o influenciador com vaquinhas ou mão de obra. Não há participação direta do poder público.
“Quando eu comecei com esse trabalho, eu voltei a acreditar no mundo de novo. A internet te destrói, mas também muda a vida de muita gente”, afirma Guilherme.
‘Tentativa de aliviar essa situação e gerar um acolhimento’
Influenciadora faz faxinas em casas de acumuladores em SP
Divulgação/Ellen Milgrau
Ellen Millgrau tem mais de 1 milhão de seguidores só no Instagram. Já são mais de 30 faxinas em casas, a maioria em São Paulo. Fora do estado, a equipe fez uma na Rocinha, no Rio de Janeiro. O contato, segundo ela, vem de pessoas do Brasil inteiro.
“Infelizmente, essa situação é mais comum do que parece. Mas, por enquanto, só tenho estrutura financeira para atender os pedidos em São Paulo. Custear o deslocamento dos voluntários acaba sendo muito caro, e como as faxinas são feitas por meio de doações, não conseguimos bancar. Meu sonho é levar o projeto para outros estados.”
Quando começou, em 2022, um amigo estava em depressão. Foi quando ela achou a forma prática de ajudá-lo a organizar o ambiente que vivia.
“Já acompanhava alguns conteúdos sobre faxina feitos por algumas influenciadoras estrangeiras, então decidi gravar a arrumação na casa dele, e o vídeo viralizou. Logo depois dessa primeira experiência, decidi fazer mais conteúdos nesse estilo, não pela produção de conteúdo, mas porque foi algo que me fez muito bem.”
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“Um dos nossos objetivos é mostrar que a depressão e ansiedade não são ‘frescura’ ou falta de vontade. Eu já passei por momentos de depressão profunda, então sei que nem sempre é fácil se levantar para fazer coisas que parecem simples”, completa Ellen.
O trabalho é 100% voluntário e cada caso é feito individualmente. “Não consigo fazer várias ao mesmo tempo, até porque é muito cansativo.”
“Vamos trabalhando caso a caso, mas normalmente abro uma vaquinha e peço a ajuda dos meus amigos e seguidores. Sempre tentamos fazer o que está ao nosso alcance. Já tiveram vários casos em que doei coisas da minha própria casa, como um frigobar e uma cama”, diz.
A influenciadora, assim como Guilherme, já encontrou de tudo nas visitas. A pior situação é quando encontra animais mortos, ratos e baratas, revela.
“Me dá uma certa agonia, mas, ao mesmo tempo, me sinto aliviada de ver a diferença da casa quando acabamos a faxina.”
Ações da prefeitura
Em São Paulo, foi criado pela prefeitura, no âmbito da política de atenção a este grupo, o Comitê Intersecretarial de Atenção Integral às Pessoas em Situação de Acumulação (Crasa).
“É considerada acumulação a situação em que a pessoa mantém excesso de objetos, resíduos ou animais, associada à dificuldade de organização e manutenção de higiene e salubridade do ambiente. Esses casos podem estar relacionados com transtornos mentais ou outras causas”, informou a prefeitura.
A ação municipal prevê um projeto terapêutico para cada indivíduo. A intenção é que esses pacientes reconheçam que os comportamentos oferecem risco à saúde.
Como ocorre o atendimento, segundo a Prefeitura de SP:
🧑‍⚕️É mantido um profissional apto a participar do encaminhamento nos casos em que há acumuladores em cada Centro de Referência de Assistência Social (Cras).
🏥 A porta de entrada para o atendimento dessas ocorrências é a rede municipal de saúde, por meio dos serviços especializados em saúde mental.
🫂 As equipes de Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) participam, de acordo com o encaminhamento dado pela pasta da Saúde, de um trabalho intersecretarial, cujo objetivo será a solução do problema e o atendimento adequado ao acumulador e demais envolvidos em cada caso.
🏚️ O decreto estabelece as atribuições de cada órgão no atendimento e prevê que o serviço de saúde deve elaborar um projeto terapêutico singular para cada pessoa, mas em casos de recusa da pessoa em permitir a entrada na casa ou baixa adesão às intervenções propostas, poderá ser o Ministério Público comunicado e “a adoção da medida judicial pertinente, conforme a gravidade do caso”.
Entenda o transtorno de acumulação
Fernanda Augustini Pezzato, doutora em psicologia experimental da Universidade de São Paulo, explica que o transtorno de acumulação (TA) é definido como uma “condição caracterizada pela dificuldade persistente em descartar ou se desfazer de pertences”.
Diferentemente de colecionadores, que organizam, limpam e catalogam os itens, geralmente relacionados a um tema de interesse específico, os acumuladores tendem a manter objetos de diferentes categorias e sem qualquer tipo de organização, pontua a especialista.
“Além disso, o colecionismo tende a ser mais frequente na infância e adolescência e sofrer declínio ao longo da vida, enquanto a acumulação tende a agravar com o passar dos anos. Os indivíduos podem acumular objetos, animais e até mesmo informação eletrônica.”
A especialista detalha que, para completar o diagnóstico, é fundamental que a acumulação resulte em congestionamento ou obstrução de áreas, o que compromete o uso, ou que cause sofrimento ou prejuízos sociais na vida da pessoa.
“Por fim, devem ser descartadas outras condições médicas que expliquem o comportamento de acumular. Com relação à causalidade, há evidências de fatores genéticos associados – sendo observada maior probabilidade de acumulação em familiares de primeiro grau de acumuladores compulsivos em comparação aos grupos controle.”
“Outro importante fator é a exposição a eventos traumáticos, havendo considerável incidência de sintomas de estresse pós-traumático em idosos acumuladores. Alguns tipos de traumas apresentam correlação mais robusta com o desenvolvimento do transtorno, a exemplo de exposição a violência doméstica, perda acidental ou trágica de ente querido ou negligência na infância.”
Como tratar? Fernanda destaca que a abordagem deve ser respeitosa aos acumuladores e familiares na busca para resolver o problema.
“De forma integrada com os serviços da rede pública, e evitando gerar novos traumas, ofertando apoio psicológico e acolhimento nas esferas da saúde e assistência social. É indicado que a família ou o morador procure ajuda no sistema de saúde.”
Sobre os tratamentos disponíveis, a especialista diz que se mostra funcional a terapia cognitivo-comportamental, que busca entender a forma como as pessoas interpretam e reagem ao que está ao seu redor.
“Outra possibilidade para tratamento dos traumas que podem estar associados ao desenvolvimento de padrão de comportamento acumulador é a terapia EMDR, que consiste em tratamento baseado em evidência para transtorno do estresse pós-traumático e pode gerar benefícios aos pacientes a partir do reprocessamento da experiência.”
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