
Com o aumento nos índices de violência doméstica, desde 2021 uma lei estadual estabelece que os responsáveis pela administração condominial denunciem os casos suspeitos à polícia. Para outras situações de violência ocorridas no interior dos condomínios, o que vale é o artigo 135 do Código Penal, que trata da omissão de socorro.
Para analisar esse tema sensível, a coluna ouviu dois advogados especializados e a vice-presidente do Segmento Condomínios da Associação das Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi/ES), Patrícia Sperandio.
Patrícia lembra que a lei que torna obrigatória a comunicação do fato à polícia é a Lei 11.469/2021. “Esta lei exige que condomínios residenciais comuniquem à Delegacia de Atendimento à Mulher as situações de suspeita ou de atos flagrados de violência contra a mulher”, diz. “O objetivo é coibir atos de violência e proteger grupos vulneráveis de violações dentro do próprio lar. Muitas vezes, os vizinhos não querem se envolver, e a vítima chega a óbito por falta de ajuda”, completa Patrícia.
Limites

No entanto, como estabelecer até onde deve e pode ir a autoridade do síndico, sem interferir no direito à privacidade, e ainda, sem que o Poder Público delegue funções aos condomínios em vez de cumprir seu papel? Patrícia Sperandio defende que haja equilíbrio entre a autonomia condominial e a obrigação de denúncia, o que “exige entendimento das leis e normas estabelecidas pelo Estado ou Federação, bem como a aplicação do bom senso. É importante que síndico e administração do condomínio atuem com transparência, respeito e responsabilidade, ouvindo moradores e tomando decisões em conjunto”, pondera.
Orientação e comunicação
A representante da Ademi/ES também sugere que síndicos e administradoras deveriam receber treinamento do Estado, “sobre como deverão agir para o cumprimento da lei, pois é uma situação delicada e que envolve o direito de privacidade, até onde pode se chegar na ação de forma administrativa”, analisa.
Para ela, também é importante que os síndicos anexem placas nos elevadores informando sobre a lei e os telefones para fazer contato, “pois, além do síndico, moradores também podem contribuir e fazer a denúncia, a comunicação é uma lembrança dessa responsabilidade”, acredita Patrícia.
Análise jurídica
Sobre os aspectos legais, um dos advogados ouvidos pela coluna, João Guilherme Alexandre, do escritório Motta Leal & Advogados Associados, especialista em Direito Imobiliário, lembra que a legislação estadual traz uma obrigação específica para casos de violência doméstica, mas que, independentemente disso, o código penal considera crime de omissão de socorro a não comunicação de um fato criminoso, e a própria Constituição Federal estabelece essa responsabilidade a todo e qualquer cidadão.
“A imposição de deveres aos cidadãos ou entes privados, como os síndicos, encontra respaldo constitucional e legal quando se trata de colaboração com o poder público em situações de relevância social, como a proteção da vida e da integridade física. A Constituição Federal, no artigo 144, estabelece que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. Portanto, a participação da sociedade não é, em tese, uma substituição do Estado, mas um complemento à sua atuação”, avalia o jurista.
Conflito entre Direito Civil e Lei Estadual
Mas, considerando que o Direito Civil é de competência privativa da União, a imposição de obrigações aos síndicos por meio de legislação estadual pode ser vista como inconstitucional?
Para o advogado Eduardo Sarlo, do escritório Sarlo & Machado, especialista em Direito Civil e Empresarial, embora todo cidadão tenha o dever de comunicar um fato delituoso às autoridades, no caso específico da lei estadual, dependendo do ponto de vista “essa obrigação pode ser interpretada como uma transferência indevida de deveres típicos do Estado, especialmente no que se refere à função de segurança pública. Síndicos não têm formação jurídica ou policial e podem ser colocados em situação de exposição pessoal ou de erro na avaliação dos fatos, o que compromete a eficácia da medida e pode gerar insegurança jurídica”, pondera.

Ele ressalta que “a imposição de deveres específicos aos síndicos — figuras previstas no Código Civil — por meio de leis estaduais pode configurar violação à competência privativa da União para legislar sobre Direito Civil. Embora o tema tenha interface com políticas públicas de proteção às vítimas, a criação de obrigações e sanções civis ou administrativas relacionadas à gestão condominial por entes estaduais pode ser questionada judicialmente por inconstitucionalidade”.
Penalidade
Sarlo ressalta que a lei hoje em vigor no Espírito Santo não traz previsão de sanção penal específica para quem deixar de denunciar. “No entanto, a omissão em comunicar fato criminoso pode, em tese, ser interpretada como conivência, sobretudo se houver vínculo jurídico que imponha o dever de agir”, lembra.
O código penal estabelece reclusão de 1 a 6 meses, ou multa, em caso de condenação por omissão de socorro. Já a Lei Estadual 11.469/2021 traz penalização pecuniária para o condomínio, com multa que varia de 200 e 2.000 Valores de Referência do Tesouro Estadual (VRTEs). Em casos de reincidência, a multa poderá ser aplicada em dobro.
Debate não pacificado
O advogado João Guilherme Alexandre complementa a discussão lembrando que o tema está longe de ter uma definição no âmbito jurídico. “A discussão sobre a constitucionalidade de leis nesse sentido é profunda e ainda não está pacificada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) . Contudo, é preciso lembrar que a Constituição Federal, no artigo 24, garante que os Estados e Municípios podem legislar sobre questões de proteção social e saúde pública, inclusive em colaboração com o Poder Público Federal”, lembra.

Ele diz ainda que a imposição de deveres de denúncia de violência doméstica por parte dos síndicos é normalmente justificada com base nessas competências concorrentes, “sob o argumento de que a norma trata de segurança, assistência social e proteção de grupos vulneráveis, e não de obrigações contratuais ou civis típicas da administração condominial”, completa.
João Guilherme Alexandre também considera importante aprimorar os mecanismos legais. “O equilíbrio entre obrigação legal, privacidade e autonomia condominial não é automático. Ele depende de regulamentação sensível, capacitação prática dos funcionários do condomínio e a vigilância cometida para não violar a privacidade. A imposição do dever de comunicar às autoridades a ocorrência de casos de violência doméstica não é absoluto e deve ser cumprido de forma a não violar direitos”, acredita.

Já para o advogado Eduardo Sarlo, o tema exige equilíbrio entre a obrigação legal de denúncia, a autonomia da administração condominial e o direito à privacidade dos condôminos. “O equilíbrio se alcança com cautela, capacitação e respeito ao devido processo legal. A obrigação de denúncia deve considerar os limites da atuação do síndico, que não pode invadir a esfera privada sem elementos mínimos de suspeita razoável. A autonomia condominial não autoriza a omissão diante de crimes, mas também não impõe ao síndico o dever de investigar. O ideal é que ele atue como agente de encaminhamento, e não como julgador de condutas”, avalia.
Ferramentas
Na linha da sugestão feita por Patrícia Sperandio, da Ademi/ES, ambos os advogados defendem que haja um sistema estruturado de capacitação, suporte jurídico e normatização interna, com protocolos padronizados, voltados para a defesa das pessoas em situação de vulnerabilidade, e também preservar a imagem do síndico e dos demais membros da administração. Entre as sugestões, realização de cursos e treinamentos, criação da canais diretos de comunicação com Polícia Civil e Ministério Público, e distribuição de cartilhas nas dependências do condomínio.