Em 1936, os policiais do Departamento de Ordem Política e Social do Rio de Janeiro responsáveis pela captura do líder comunista Luiz Carlos Prestes e da sua esposa, Olga Benário Prestes, foram convidados pela administração Franklin Delano Roosevelt, via embaixada, a fazerem um intercâmbio nos Estados Unidos e conhecerem os departamentos de polícia de Chicago, Nova York e Washington, bem como a sede do FBI, na capital, como forma de recompensa. Tudo foi pago pelos EUA.
Este episódio deixa bastante claro como a cooperação entre Brasil e EUA em matéria de segurança pública sempre teve um fim eminentemente político – e não apenas técnico, como é amplamente divulgado.
Afinal, acaso Olga, judia e comunista, não foi entregue pelo Estado varguista, com ciência e anuência dos EUA, à Gestapo, a polícia secreta nazista, para ser morta numa câmara de gás? E não o foi precisamente por um daqueles policiais agraciados anteriormente pelo governo estadunidense?
De fato, ainda que ocorrendo de forma distinta ao longo da história – mais informal e extraoficialmente, a partir dos anos 1990 –, o caráter desigual e violento desta cooperação permaneceu inalterado.
E não poderia ser diferente. Afinal, estas “ajudas” têm antes o objetivo de nos dominar, sem deixá-lo muito claro e sem que se valham os EUA da força para tanto, do que de estabelecer uma parceria bilateral que ajudasse efetivamente na persecução a, digamos, crimes transnacionais.
E isso, atendendo a demandas práticas e políticas, individuais e grupais, dos nossos altos dirigentes e funcionários públicos, como viagens ao exterior, maior prestígio no currículo, melhores equipamentos, mais recursos disponíveis, melhor status junto ao governo e à população, melhores capacitação e treinamento dos efetivos etc.
Pensar a segurança pública, assim, desde um país dependente e subdesenvolvido, como o Brasil, obriga se ponha em suspensão, submetendo-a a um exame crítico, toda e qualquer cooperação policial levada a cabo junto dos EUA, uma vez, por trás da roupagem virtuosa com que ela é vestida, encontra-se uma miríade de interesses materiais.
Mais recentemente, servem bem de ilustração disso as duas ocasiões já em que servidores da Polícia Civil de Santa Catarina atenderam a cursos na Academia Internacional de Cumprimento da Lei (Ilea, na sigla em inglês) de Gaborone, sediada em Botsuana, com tudo custeado pelos EUA.
As Ileas são escolas internacionais voltadas a operadores da justiça criminal (promotores, policiais, juízes etc.) mantidas pelos Estados Unidos, por meio do seu Escritório de Assuntos Internacionais de Narcóticos e Cumprimento da Lei, órgão do Departamento de Estado, cujos professores provêm dos quadros de diversas agências policiais federais daquele país.
Os convites para que os nossos policiais atendessem aos cursos sobre tráfico humano e crimes cibernéticos da Ilea de Gaborone partiram da Embaixada, e foram feitos diretamente aos selecionados por ela para os cursarem.
Segundo o sítio virtual da Ilea de San Salvador, um dos seus objetivos é “incentivar relacionamentos entre entidades de aplicação da lei estrangeiras e suas contrapartes estadunidenses para assistir na proteção dos cidadãos e dos negócios americanos, por meio de uma cooperação internacional fortalecida”. Desnecessário se diga algo mais.
Carlos Costa, ex-chefe do FBI no Brasil, já havia deixado tudo claro, em entrevista a Bob Fernandes para a edição 283 de Carta Capital, em 2004:
“Não se iludam quanto aos Estados Unidos. O que importa são os seus interesses. (…) Os governantes americanos fazem o que lhes interessa, e viemos aqui para cuidar dos nossos interesses. Ponto final. O resto é retórica.”
*João Gaspar é graduando em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e bolsista do Instituto de Estudos Latino-Americanos (Iela/UFSC)
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.