A decisão do Supremo Tribunal Federal de submeter ao regime de repercussão geral (Tema nº 1.389/STF) a discussão sobre “a competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil ou comercial de prestação de serviços, assim como a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade” acende alertas institucionais, jurídicos e sociais. Não está em jogo apenas uma questão contratual, mas o futuro da proteção trabalhista e da ordem constitucional democrática de 1988.
O tema central é se a autonomia privada e a ampla liberdade de contratar no âmbito das relações de trabalho, defendida por grandes grupos econômicos, é absoluta e poderia prevalecer sobre direitos sociais constitucionalmente garantidos e sobre as leis trabalhistas em vigor no país. A pejotização – quando trabalhadores são pressionados a atuar como empresas (CNPJ) – é uma fraude trabalhista reiterada na atualidade, travestida de modernização, que transfere custos de proteção social aos próprios trabalhadores e ao Estado, ao passo que maximiza lucros empresariais.
Dados do Dieese e do Ipea revelam um expressivo crescimento da pejotização nos últimos anos: de 8,5% em 2015 para 14,1% em 2023. Isso representa um universo estimado de cerca de 18 milhões de pessoas pejotizadas no Brasil, considerando os milhões de MEIs ativos e outras formas de atuação com CNPJ, muitas vezes inseridos em vínculos de dependência que ocultam relações empregatícias. Isso inclui, por exemplo, contratos com corretores, profissionais do ramo da saúde em geral (inclusive médicos), artistas, profissionais da área de TI, advogados associados, entregadores, transportadores, trabalhadores contratados via plataformas digitais, engenheiros, professores, entre outros. Praticamente todas as profissões caminham para serem majoritariamente “pejotizadas”.
Essa prática, porém, deteriora direitos fundamentais trabalhistas e previdenciários, prejudica a organização coletiva dos trabalhadores, compromete brutalmente a arrecadação tributária e previdenciária e impacta negativamente a capacidade estatal de financiar políticas públicas essenciais, como a Previdência Social, ampliando desigualdades sociais e econômicas.
Cabe, pois, ressaltar o óbvio: pessoas jurídicas não detêm direitos trabalhistas e, muito menos, direitos humanos. Pessoas jurídicas não descansam, não gozam de férias, não sofrem discriminação ou assédio, podem trabalhar durante todo o dia e toda a noite, não sofrem acidentes de trabalho e muito menos adoecem. Ao transformar trabalhadores em meros prestadores de serviço autônomos ou “pejotas”, apaga-se a dimensão humana do trabalho e esvazia-se o propósito central do Direito do Trabalho: estabelecer limites e trazer equilíbrio a uma relação estruturalmente desigual e, assim, garantir condições dignas aos trabalhadores.
Esse cenário remonta ao emblemático caso Lochner v. New York, em que a Suprema Corte americana invalidou, em 1905, uma lei do estado de Nova York que limitava a jornada de trabalho em padarias a 60 horas semanais ou 10 horas diárias. A Corte americana decidiu que tal limitação violava a “liberdade contratual” protegida pela 14ª Emenda, entendendo que o Estado não poderia interferir no direito de empregadores e empregados fixarem livremente as condições de trabalho. Essa decisão ficou historicamente conhecida como um símbolo do uso do Direito Constitucional para promover a liberdade econômica irrestrita em detrimento de direitos trabalhistas básicos. Posteriormente, o entendimento foi superado, sendo hoje amplamente rejeitado como exemplo de ativismo judicial conservador.
Ainda mais grave é a possibilidade de se retirar da Justiça do Trabalho a competência para analisar e julgar esses casos de possível nulidade na pactuação, transferindo-os todos, como a admitir a presunção quase que absoluta de validade do contrato civil/comercial, à Justiça Comum, à revelia da competência expressamente estabelecida no artigo 114 da Constituição. Ademais, deixando de lado as inúmeras dificuldades de índole processual que uma tal determinação teria que superar, o aspecto mais relevante é que, sem o conhecimento específico da Justiça especializada, o sistema protetivo perderia eficácia, aprofundando a precarização e estimulando a fraude.
Porém, sob o fundamento de descumprimento de sua jurisprudência sobre terceirização, que claramente é inespecífica em muitos casos em que só há dois polos na relação, a Suprema Corte tem frequentemente usado reclamações constitucionais para reverter decisões da Justiça do Trabalho que identificam vínculos de emprego ocultos, travestidos de MEIs, de contratos de associação ou de prestação de serviços. Muitas vezes o vínculo celetista é substituído por um “pejota” no curso da relação de emprego, sem qualquer alteração nos serviços prestados.
A eventual retirada da competência da Justiça do Trabalho também enfraqueceria a capacidade estatal de detectar graves violações a direitos humanos nas relações trabalhistas, como condições degradantes, situações de assédio moral e sexual e discriminações raciais, de gênero, por orientação sexual, por idade, por condição de saúde, por filiação a sindicato ou a partido político. Não se pode ignorar esse risco. Além do mais, seguiríamos na contramão do ODS nº 8 da ONU, no sentido de “promover o emprego pleno e produtivo, o crescimento econômico sustentável e o trabalho decente para todas as pessoas.”
Sem dúvida, o Supremo Tribunal Federal terá, com esse julgamento, uma oportunidade histórica: decidir se contribuirá para que o país avance – ainda que lentamente – rumo ao progresso social e civilizatório proclamado pela Constituição de 1988 — que assegura aos trabalhadores direitos e garantias fundamentais, incluindo a relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa — ou se abrirá caminho para uma nação de pejotizados, privados não só de direitos trabalhistas e previdenciários, mas também dos mais básicos direitos humanos.
*Gustavo Ramos é advogado, mestre em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, professor em Pós-graduação em Direito no Instituto Goiano de Direito e sócio-diretor em Mauro Menezes & Advogados.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.