Rins por dinheiro: Por dentro de uma rede de tráfico de órgãos que vai do Quênia à Alemanha


Investigação da DW mostra como um grupo internacional vem explorando africanos em situação de vulnerabilidade, “comprando” e “vendendo” seus rins para pacientes desesperados em Israel, na Alemanha e outros países. Amon Kipruto Mely e sua mãe Leah Metto em sua casa no oeste do Quênia: “Eles estão ganhando dinheiro com crianças pequenas”
Mariel Mueller/DW
O queniano Amon Kipruto Mely, de 22 anos, acreditava que poderia começar uma vida melhor após tomar a difícil decisão de vender o seu rim. Morador de um vilarejo no oeste do Quênia, no leste da África, ele enfrentava dificuldades financeiras cada vez mais graves após a pandemia da Covid-19, enquanto trocava constantemente de emprego na tentativa de alcançar uma renda estável.
A busca por um alívio financeiro pareceu ter chegado ao fim quando um amigo lhe contou sobre uma maneira rápida e fácil de ganhar 6 mil dólares (R$ 35 mil). “Ele me disse que vender meu rim seria um bom negócio”, conta Amon. O que parecia um golpe de sorte, porém, mergulhou o jovem em uma rede obscura de exploração, desespero e arrependimento.
Esta reportagem é resultado de meses de uma investigação conjunta conduzida pela revista Der Spiegel, a rede ZDF e a DW. Os três veículos alemães coletaram denúncias, analisaram documentos, conversaram com profissionais da área e rastrearam a atividade de vendedores e compradores de órgãos para identificar como uma rede internacional – que opera do Quênia à Alemanha – explora pessoas vulneráveis desesperadas, de um lado, por dinheiro, e do outro, por um órgão que lhes salve a vida.
Após decidir vender seu rim, Amon Mely foi apresentado a um intermediário que organizou seu transporte para o Hospital Mediheal na cidade de Eldoret, no oeste do Quênia. Lá, ele foi recebido por médicos indianos que lhe entregaram documentos em inglês, um idioma que ele não entende.
No processo, o jovem não foi informado sobre riscos à saúde do procedimento. “Eles não me explicaram nada. A pessoa que me levou apontou para outros ao meu redor e disse: Veja, todos eles doaram e estão até voltando a trabalhar.”
Após a operação, ele recebeu apenas 4 dos 6 mil dólares prometidos. Com o dinheiro – cerca R$ 23,3 mil – conseguiu comprar um telefone e um carro. Mas logo depois, sua saúde piorou. Amon se sentiu tonto e fraco e acabou desmaiando em casa. No hospital, sua mãe, Leah Metto, ficou chocada ao saber que o filho havia vendido o rim. “Eles estão ganhando dinheiro com crianças pequenas como Amon”, disse ela.
A história do queniano é uma entre muitas. Willis Okumu, pesquisador de crime organizado do Instituto de Estudos de Segurança na África, sediado em Nairóbi, conversou com vários jovens do município de Oyugis que lhe disseram ter vendido seus rins. A cidade fica a 180 quilômetros de Eldoret – onde os transplantes são realizados.
“De fato, isso é crime organizado”, disse ele. Okumu calcula que até cem jovens venderam seus órgãos só em Oyugis, muitos dos quais agora sofrem de problemas de saúde, depressão e trauma psicológico. “Acho que eles não chegarão aos 60 anos”, acrescentou Okumu, cujo trabalho sobre o assunto foi publicado em janeiro do ano passado no Enact, um projeto implementado pela Interpol.
Além de Amon Mely, a DW conversou com outros quatro jovens de Oyugis que dizem ter vendido seus rins por cerca de 2 mil dólares (R$ 11 mil). Eles relatam que após realizarem a própria cirurgia, os intermediadores lhes ofereciam para recrutar novos doadores por uma comissão de 400 dólares cada.
Cadeia de exploração
“Há uma área cinzenta na legislação que esse grupo explora”, explicou Okumu. “Não há lei que impeça você de doar seu rim por dinheiro e você não pode ser processado por isso”, disse ele, referindo-se às informações que recebeu da unidade de crime organizado transnacional da polícia queniana.
O que é permitido, de acordo com a lei queniana, são doações de órgãos para parentes e por razões altruístas, ou seja, por vontade própria. Isso é usado para estabelecer uma cadeia de exploração no país.
Falando à DW sob condição de anonimato, um ex-funcionário do Hospital Mediheal afirmou que a compra e venda de órgãos acontece há anos no local.
Inicialmente, receptores somalis vinham ao hospital para receber o novo órgão. Mas em 2022, as cirurgias foram dominadas por “clientes” de Israel e, a partir de 2024, da Alemanha. Doadores de diversos países, como Azerbaijão, Cazaquistão e Paquistão, além dos quenianos, são levados a Eldoret para a remoção do órgão.
Os doadores são obrigados a assinar documentos declarando serem parentes dos receptores e consentindo com a remoção do rim, sem serem informados sobre os possíveis riscos à saúde. “Por causa da barreira do idioma, eles simplesmente assinam”, disse o ex-funcionário.
Mudança para um mercado mais lucrativo
Desde a mudança de receptores somalis para israelenses e alemães, os negócios se ampliaram, acrescentou ele. O custo por um rim pago por cada cliente chega a 200 mil dólares (R$ 1,1 milhão) – um número corroborado por várias fontes.
O ex-funcionário do hospital disse à DW que uma agência chamada “MedLead” era responsável por encontrar doadores e receptores internacionais.
Em seu site voltado para o público alemão, a MedLead afirma fornecer doações de rins dentro de 30 dias “seguindo a lei de doação de órgãos” e promete que os doadores são “100% voluntários”, ou seja, que estão de acordo com a retirada do rim.
“A MedLead conecta pacientes renais em todo o mundo com uma rede internacional de hospitais e soluções médicas”, diz o site.
Em sua página no Facebook, há diversos vídeos com depoimentos de pessoas agradecendo à empresa pela ajuda na obtenção de um novo rim. Alguns gravados em Eldoret, no Quênia.
O vídeo mais recente do site mostra Sabine Fischer-Kugler, uma mulher de 57 anos de Gunzenhausen, Alemanha, que sofre de uma doença renal há 40 anos. Depois que um primeiro rim substituto parou de funcionar, ela estava desesperada para encontrar um segundo.
No entanto, a lista de espera para receber o órgão na Alemanha é longa e pode levar de 8 a 10 anos. No país, somente os rins de pessoas falecidas que concordaram explicitamente em vida com a doação de órgãos podem ser usados para transplantes, e não há doadores suficientes para as mais de 10 mil pessoas que estão na fila.
“Soluções inovadoras fora da Alemanha oferecem aos pacientes a chance de escapar da espera insuportável. Por que perder anos quando a ajuda está disponível hoje?”, escreve a MedLead em uma publicação no Facebook.
Escassez de doações de órgãos alimenta desespero
Sabine Fischer-Kugler conheceu seu doador brevemente – segundo ela, um homem de 24 anos do Azerbaijão. O contrato alegava que ele não estava sendo pago, embora Fischer-Kugler tenha dito que pagou entre 100 mil e 200 mil dólares à MedLead (R$ 584 a R$ 1,1 mil).
“Talvez eu seja um pouco egoísta porque eu queria esse rim e, o mais importante, o contrato parecia correto. Mas está claro. A operação não é tão limpa quanto parece.”
De acordo com a lei alemã, pagar por um órgão é ilegal, e os infratores podem pegar até cinco anos de prisão.
O homem por trás da MedLead é Robert Shpolanski, um cidadão israelense. Em 2016, ele foi acusado no Tribunal de Magistrados de Tel Aviv de ter realizado “um grande número de transplantes renais ilegais” em países como Sri Lanka, Turquia, Filipinas e Tailândia, ao lado de Boris Wolfman, que supostamente chefiava a rede criminal. Wolfman também foi apontado como responsável por atividades de transplante ilegal em outros lugares.
“É um pouco suspeito. Você não deveria pagar, mas paga”
Shpolanski nega qualquer ligação com Wolfman. Em um e-mail para Der Spiegel, ZDF e DW, a MedLead declarou que não tem nenhum envolvimento na localização dos doadores, que todos são 100% voluntários e que a empresa tem operado de forma transparente e em total conformidade com a lei desde a sua fundação.
Sem se identificar como jornalistas, a reportagem se hospedou no Eka Hotel, em Eldoret, localizado a apenas um quilômetro do Hospital Mediheal. É ali que diversos pacientes estrangeiros que aguardam os transplantes ficam hospedados – alguns visivelmente debilitados, viajando com membros da família.
Uma mulher russa, que estava esperando por uma cirurgia renal para o marido, disse que “ninguém dá o rim de graça”. Já um israelense de 72 anos, que faz diálise no hospital Mediheal afirmou que o procedimento “é um pouco estranho”.
“Você não deveria pagar, mas paga. A história é que [o doador] é um antigo primo meu que, de alguma forma, veio para a África ao mesmo tempo que eu”, disse. Na sua idade, ele não teria chances de receber um rim em Israel, conta.
Em Nairóbi, diretor da Kenya Renal Association, Jonathan Wala, já tratou vários pacientes que chegam em sua clínica com complicações pós-cirúrgicas. “Temos relatos de pacientes israelenses que vieram com infecções graves, alguns com rins que basicamente pararam de funcionar”, afirma. Seus colegas alertaram as autoridades quenianas sobre os transplantes realizados no Mediheal Hospital.
Negócio multimilionário protegido
Uma investigação encomendada pelo Ministério da Saúde do Quênia, de 2023, identificou que os doadores e receptores muitas vezes não eram parentes. Alguns transplantes de alto risco eram realizados em pacientes com câncer ou em pessoas extremamente idosas. A apuração também apurou que quase todos os procedimentos eram pagos em dinheiro.
O relatório recomendou que “a alegação de tráfico de órgãos deve ser investigada pelas autoridades competentes”. Apesar das descobertas alarmantes, a investigação nunca foi tornada pública e nenhuma medida foi tomada.
Um investigador particular local em Eldoret, que rastreou o comércio ilegal de transplantes, disse à reportagem que pelo menos dois outros hospitais também estão envolvidos no esquema. Ele argumenta que não pode investigar estes casos por risco de vida. “Há pessoas muito poderosas que podem estar envolvidas.”
O fundador e presidente do Mediheal Group é Swarup Mishra. O indiano é ex-deputado e tem boas relações com o presidente do Quênia, William Ruto. Apesar das persistentes acusações de tráfico de órgãos, Ruto o nomeou presidente do Kenya BioVax Vaccine Institute, de propriedade estatal, em novembro passado, função que permite que Mishra represente o Quênia como pessoa de contato da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de autoridades governamentais estrangeiras. Mishra não respondeu aos repetidos pedidos de entrevista e deixou uma lista de perguntas sem resposta.
Enquanto isso, Amon e outros como ele lutam para sobreviver com um rim e com a saúde comprometida. “Se eu pudesse voltar no tempo, não teria aceitado a remoção do meu rim. Eu me odeio por isso.”
Autor: Mariel Müller
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