A Terra já foi roxa e Minas Gerais teve um mar vermelho


Algumas serras mineiras são prova de um planeta completamente diferente do que a gente vive hoje. Impressão artística da Terra no início do períodod Arqueano com uma hidrosfera arroxeada e regiões costeiras
Oleg Kuznetsov
O que os microrganismos conhecidos como haloarqueas tem a ver com a foto acima? E será que já houve mar em Minas Gerais? As respostas para essas dúvidas estão no mesmo lugar, ou melhor no mesmo tempo: bilhões de anos atrás, no passado da Terra. Confira na coluna Histórias Naturais, escrita pelo biólogo Luciano Lima.
Talvez você se lembre da época da escola… Fotossíntese é um processo utilizado por diferentes organismos para converter energia luminosa solar em energia química. Se eu pedir para você citar algum organismo que faça fotossíntese, você provavelmente irá se lembrar das plantas.
As plantas são organismos fotossintetizantes, mas elas não são os únicos e nem foram as inventoras desse processo que moldou profundamente a vida na Terra.
Além delas, também são capazes de realizar fotossíntese as algas, diferentes tipos de bactérias e arqueas (microrganismos unicelulares morfologicamente muito parecidos com as bactérias, mas genética e bioquimicamente tão distintas das bactérias quanto de nós).
Histórias Naturais é a coluna semanal do biólogo Luciano Lima no Terra da Gente
Arte/TG
Além de ser geralmente associada às plantas, a fotossíntese costuma também ser bastante lembrada como o processo responsável por produzir oxigênio.
Resumindo, quando a energia luminosa é utilizada para converter gás carbônico e água em “alimento”, o oxigênio acaba sobrando no final do processo e é liberado para o ambiente. No entanto, ao contrário do que muita gente imagina, há diferentes tipos de fotossíntese e não apenas a que libera oxigênio.
Haloarqueas, por exemplo, são microorganismos capazes de utilizar a energia do sol para produzir alimento, mas que não produzem oxigênio como subproduto. Diferente das plantas, que para realizar fotossíntese absorvem o espectro vermelho e azul da luz visível e refletem o verde, haloarqueas absorvem o espectro verde e amarelo da luz e refletem luz roxa.
Uma curiosa teoria conhecida como “Hipótese da Terra Roxa” argumenta que como as primeiras formas de vida, assim como as haloarqueas, desenvolveram primeiro a fotossíntese baseada no espectro verde e amarelo da luz, a coloração do nosso planeta vista do espaço entre 3,5 e 2,4 bilhões de anos atrás era roxa.
Isso pode parecer só um detalhe “fashion”, mas astrobiólogos (biólogos que investigam a possibilidade de vida fora da Terra) argumentam que esse conhecimento pode ser utilizado como pista para buscar vida em planetas distante.
Mas como sabemos que as primeiras formas de vida não produziam oxigênio? Pois quando o oxigênio entrou em cena, ele mudou drasticamente a história da vida e até mesmo da geologia na Terra, deixando muitos vestígios que somos capazes de observar até hoje, inclusive aqui no Brasil.
Muita gente que admira as serras próximas a Belo Horizonte e outras cidades mineiras do chamado Quadrilátero Ferrífero, como a Serra do Curral e a Serra da Moeda, não se dão conta que estão olhando para o fundo do mar.
Serra do Curral, em Belo Horizonte (MG)
Adilmargs / Wikimedia
Isso pode até parecer um trecho de uma das poesias Carlos Drummond de Andrade sobre as montanhas de ferro de Minas Gerais, mas é tão real como poético, a natureza brasileira é poesia pura.
Recentemente, contei aqui no Histórias Naturais sobre os fósseis mais antigos conhecidos no Brasil. Eles são estromatólitos (pequenos prédios de bactérias e outros microorganismos) da região do Quadrilátero Ferrífero, datados em cerca de 2,4 bilhões de anos. Quando ainda vivos, esse fósseis presenciaram uma das mais drásticas e importantes transformações da vida terrestre.
Foi nessa época que um grupo de bactérias, as cianobactérias, começou a realizar fotossíntese utilizando o espectro vermelho da luz, que tem como matéria prima gás carbônico e água e libera oxigênio durante o processo.
Muito lentamente, o oxigênio produzido por esses microorganismos foi se acumulando na Terra e mudou para sempre a história do nosso planeta. Esse acontecimento é conhecido como o “Grande Evento de Oxigenação”, tendo acontecido entre 2,4 e 2 bilhões de anos atrás.
Na época, os oceanos tinham uma enorme quantidade de ferro dissolvido, acumulada durante mais de um bilhão de anos. O oxigênio produzido pelas cianobactérias primeiro foi se acumulando nos oceanos e começou imediatamente a reagir com o ferro dissolvido na água e a formar óxido de ferro, também conhecido como ferrugem, a mesmíssima ferrugem da sua panela velha.
A ferrugem foi se acumulando na águas e mudando sua cor. Primeiros nos mares mais rasos, mas depois por todo o oceano. Nosso planeta, visto do espaço, tornou-se então vermelho sangue. Além de literalmente mudar a cor do planeta, outro resultado da sedimentação da ferrugem no fundo dos mares rasos da época está literalmente “escrito na pedra”, ou melhor na rocha.
Em alguns lugares do mundo são encontradas o que os geólogos chamam de “formação ferrífera bandada”, que nada mais são do que camadas e mais camadas de “ferrugem” que foram sendo depositadas uma sobre as outras no fundo do mar. Tanto o oxigênio quanto o ferro são solúveis em água, mas a ferrugem acaba afundando.
Assim foi formada uma das maiores reservas de ferro do planeta, escondida sob as serras mineiras da região do Quadrilátero Ferrífero. Ou seja, se o sertão vai virar mar eu não sei, mas a ocorrência de formações bandadas de ferro é prova irrefutável que não apenas Minas Gerais já teve mar, mas que ele foi vermelho.
Quando as cianobactérias surgiram a maioria dos organismos era adaptada a um mundo onde praticamente não existia oxigênio. Se hoje esse gás é considerado um indispensável para boa parte da vida no planeta, na época ele foi sinônimo de apocalipse.
Uma espécie de algas verde-azuladas (Cylindrospermum sp) ampliada em laboratório
Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation (CSIRO)
O oxigênio intoxicou os microrganismos que conviviam nos oceanos do planeta há mais de 2 bilhões de anos. Estima-se que mais de 80% da vida que existia no planeta na época pereceu envenenada pelo oxigênio, que dos mares rasos logo se espalhou por todos oceanos. Por isso, o “Grande Evento de Oxigenação” é considerado também o primeiro evento de extinção em massa do planeta.
Após oxigenar os oceanos e reagir com praticamente todo o ferro que havia dissolvido na água, o oxigênio começou a escapar para o ar e mudar radicalmente a atmosfera da Terra da época. Ao reagir com o metano (um dos mais poderosos gases de efeito estufa), abundante na atmosfera até então, e transformá-lo em gás carbônico (também um gás de efeito estufa, mas bem menos poderoso) e água, o oxigênio produzido pelas cianobactérias começou a esfriar o planeta.
Esse processo culminou em uma das primeiras eras do gelo enfrentadas pela vida na Terra, que durou cerca de 300 milhões de anos e também teve consequências desastrosas para a vida que ainda engatinhava seus primeiros passos.
Se em um primeiro momento o oxigênio liberado pelas cianobactérias pode ser acusado de assassino em massa, com o tempo ele conseguiu se redimir. Acumulado na atmosfera, o gás foi responsável por criar a camada de ozônio que, como um escudo, protege a vida atual no planeta filtrando raios ultravioletas nocivos.
Além disso, acredita-se que a catástrofe ocasionada pelo “Grande Evento de Oxigenação” influenciou decisivamente o surgimento de microrganismos mais complexos e que, mais para frente, dariam origem a fungos, plantas e a nós, os animais.
Diz o ditado que de grão em grão a galinha enche o papo, de molécula em molécula de oxigênio as cianobactérias mudaram a história da vida na Terra.
Itabiritos na Serra da Piedade são patrimônio geológico relevante para conservação
Úrsula Ruchkys / UFMG
E ainda nos deram de presente algumas das montanhas mais icônicas de Minas Gerais, poesias de Carlos Drummond de Andrade e o ferro, tão presente nossas vidas, incluindo no celular ou computador que você está utilizando para ler esse texto. Obrigado, cianobactérias.
*Luciano Lima é ornitólogo e faz parte da equipe do Terra da Gente
VÍDEOS: Destaques Terra da Gente
Veja mais conteúdos sobre a natureza no Terra da Gente
Adicionar aos favoritos o Link permanente.