Não há dúvida quanto ao fato de que o Brasil é um país de grandes cantoras, de intérpretes imponentes. Soberanas na arte de cantar, existem muitas. Algumas, ainda, possibilitam ao seu público assistir a um verdadeiro espetáculo costurado pela dramaturgia que inebria seus expectadores. Essa marca faz de algumas cantoras populares verdadeiras “atrizes da canção”.
Assucena, natural de Vitória da Conquista, uma das mais proeminentes “cantautoras” de sua geração, verdadeira atriz da canção, tem conseguido trilhar um caminho marcado pela autoralidade impregnada em sua voz e em seus gestos em cena. Baiana, assim como Gal Costa (1945-2022), Assucena conseguiu realizar uma homenagem densa e singular da obra de Gal com os shows Baby, te amo, Rio e também posso chorar e Índia, num momento em que preparava sua (re)estreia com lançamento do disco Lusco-fusco (2023), com produção musical assinada por Pupillo e Rafael Acerbi e direção artística da cantora Céu e da própria Assucena. Sem macular os méritos do disco, no palco Assucena tem a capacidade ir além com suas composições provocantes. Quando ela canta e encara seu público, parece que os toca. É como se a sua gestualidade intensa e penetrante literalmente tocasse, mas em melodias e palavras. Ninguém sai incólume quando ela indaga: “Que Brasil se acende / Que Brasil se extingue / Nesse lusco-fusco / Se é que me entende”. Como Midas, da mitologia grega, parece que tudo que ela toca vira ouro.
Não é diferente no belíssimo projeto A canção é urgente: vozes latina-americanas, idealizado por Valéria Graziano e com direção musical de Rafael Acerbi. Com apresentações no Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte e, em breve, Brasília, Assucena lidera uma grande homenagem à canção popular da América Latina, convidando Ava Rocha, Catto, Josyara e Vanessa Moreno para se somarem nesta justa celebração de nuestras raízes.
Inspirado no importante movimento “Nova canção Latino-Americana”, que surgiu em meados de 1960, com ecos em todo o continente, o projeto evidencia a atualidade da reflexão sobre as nossas origens e a perspectiva de unidade entre os povos de “Nuestra America”. Para nós brasileiros, que não somos hispanofalantes, parece ainda maior o desafio de aproximação com nossos hermanos. “A canção é urgente”, portanto, é uma iniciativa da maior importância neste contexto, possibilitando novas gerações o contato com musicalidade latina e sua história de resistência.
Com uma astuta pesquisa no cancioneiro latino-americano, o projeto apresenta uma série de três shows e rememora e reinventa canções interpretadas por Mercedes Sosa (Argentina), Violeta Parra (Chile), Chabuca Granda (Peru), Elis Regina (Brasil), Susana Baca (Peru), Chavela Vargas (México), Amparo Ochoa (México), Omara Portuondo (Cuba) e Soledad Bravo (Venezuela). É significativo que o recorte tenha privilegiado essa diversidade de mulheres latinas, em especial, nesta quadra histórica em que as diversas expressões do feminismo se articulam no continente em torno de pautas urgentes como o combate à violência e os direitos sexuais e reprodutivos de meninas e mulheres.
Na série de shows “A canção é urgente: vozes latina-americanas”, parece que Assucena e seu grupo conseguiram fazer com que a plateia pudesse recordar, no sentido que vem do latim (recordare, voltar a passar pelo coração), como bem nos lembrou Eduardo Galeano no Livro dos Abraços. Nos shows, além da palavra cantada, Assucena enveredou pela palavra falada. Recitou trechos de canções-poemas provocando a concentração imediata do público. Sem sobressaltos, a escolha acertada dos textos, tornou o marcante espetáculo num verdadeiro púlpito quando ela recitou “Si se calla el cantor” (de Horacio Guarany) e “¿Será posible el sur?” (de Carlos Porcel e Jorge Boccanera)
Recordar os diversos elementos que marcam a cultura latino-americana também é importante porque oportuniza, além de conhecer de onde viemos, refletir para onde queremos ir. A canção popular latino-americana — ao clamar contra a desigualdade, as injustiças e iniquidades do imperialismo em nosso continente — nos estimula, nos sensibiliza e potencializa a nossa capacidade de lutar contra o projeto neoliberal e imperialista em curso, que segue atualizando as formas de dependência econômica, subordinação cultural, política e militar. Ao passo que na contra tendência, movimentos sociais, culturais e sindicais em toda a América Latina não estão inertes, pelo contrário, reinventam maneiras para resistir à onda de “guerras híbridas” chanceladas nos porões estadunidenses, como observou Andrew Korybko. Como derrotamos o projeto da ALCA na virada do milênio, também é possível derrotar as sucessivas intrusões estadunidenses e defender nossa soberania.
A série de shows apresentada pelo projeto “A canção é urgente” nos faz sonhar com a América Livre, com as justas lutas dos povos originários, dos camponeses e dos trabalhadores. Assucena encarna e traz ao público uma América Latina plural, resistente e cheia de encantações. A canção, portanto, é uma aliada dos sonhadores e sonhadoras, a canção é veículo e combustível para a esperança, afinal, a “história é um carro alegre”, como nos ensinou Chico e Bituca.
*Leonardo Nogueira é doutor em Serviço Social, professor do Departamento de Serviço Social da UFOP e coordenador do Trem da História: grupo de pesquisa e extensão.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.