
Vivemos uma era em que o dinheiro deixou de ser algo que se pega e conta. Ele virou abstração — um número que aparece e desaparece em uma tela de celular. Nesse cenário, começa a surgir um termo que descreve um fenômeno cada vez mais comum: a dismorfia financeira.
O conceito vem da psicologia, mais precisamente da dismorfia corporal — um transtorno em que a pessoa tem uma percepção distorcida da própria imagem. No campo financeiro, a ideia é parecida: trata-se da diferença entre a percepção que a pessoa tem da sua saúde financeira e a realidade dos números. Você acha que está gastando pouco, mas o cartão diz o contrário. Acha que está “tranquilo”, mas o limite do cheque especial está em uso há semanas.
Essa distorção também pode se manifestar no sentido oposto — quando pessoas com finanças equilibradas acreditam estar sempre à beira do colapso, por não conseguirem visualizar com clareza sua real situação.
Essa dismorfia é alimentada pela transformação digital: a invisibilidade do dinheiro. Com o avanço dos meios de pagamento digitais — cartões por aproximação, transferências instantâneas, carteiras digitais — a experiência de gastar deixou de ser concreta. E isso impacta diretamente o nosso comportamento financeiro.
A chegada do Real Digital, prevista para funcionar dentro de um sistema totalmente digital, é mais um passo nessa direção. Diferente do PIX, que é um meio de pagamento, o Real Digital será uma versão puramente digital da nossa moeda — sem papel, sem moedas, sem sequer passar pela nossa carteira física. É o retrato mais claro da desmaterialização do dinheiro. E, embora traga vantagens como eficiência e segurança, também acentua um problema silencioso: a desconexão entre o que gastamos e o que sentimos ao gastar.
Quando o dinheiro era físico, pagar algo gerava uma sensação de perda. Tirar uma nota da carteira, contar o valor, entregar… tudo isso criava um peso emocional e psicológico que nos fazia pensar duas vezes. Hoje, a transação é um toque na tela. A fricção desapareceu — e, junto com ela, parte da consciência.
Essa mudança no comportamento tem consequências práticas:
- Gastos por impulso aumentam porque a barreira emocional sumiu.
- A ilusão de controle financeiro se fortalece, já que olhamos o saldo disponível sem lembrar das parcelas futuras.
- A ansiedade em relação ao dinheiro cresce, porque sentimos que algo está errado, mas não conseguimos visualizar onde está o problema.
Combater a dismorfia financeira exige esforço. Não basta ter acesso ao extrato — é preciso enxergar o dinheiro com clareza, mesmo quando ele não está nas mãos. Isso passa por registrar gastos, definir limites claros e, principalmente, refletir sobre o próprio comportamento de consumo em ambientes digitais.
A educação financeira também precisa se atualizar. Não adianta falar apenas de juros compostos ou planejamento financeiro. É preciso falar de psicologia do consumo, de comportamento digital e das novas formas de se relacionar com o dinheiro que não se vê.
A tecnologia não é inimiga. O Real Digital, os apps de pagamento, os bancos digitais — todos podem ser aliados. Mas só se formos capazes de reconhecer o risco de perder o controle exatamente por acharmos que temos tudo sob controle.
No fim das contas, a dismorfia financeira é mais um reflexo do nosso tempo: rápido, digital e superficial.
*Coluna escrita por Carlos Castro, planejador financeiro pessoal, CEO e sócio fundador da plataforma de saúde financeira SuperRico
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