Bairro planejado para prostituição, Itatinga supera crise, pandemia e revolução sexual da internet: ‘Não vai acabar’


Criado na ditadura militar para abrigar profissionais do sexo em área mais distante do Centro de Campinas, maior zona da América Latina reúne 1,7 mil trabalhadoras. Bairro planejado para prostituição, Jardim Itatinga reúne 1,7 mil trabalhadores do sexo
Criado no período da ditadura militar para isolar profissionais do sexo do restante de Campinas (SP), o Jardim Itatinga se transformou ao longo de décadas em uma das maiores áreas de prostituição da América Latina. Superou crises econômicas, pandemia da Covid-19 e revolução sexual da internet para seguir pulsante. “Não vai acabar”, enfatiza a pesquisadora Carolina Bonomi, da Unicamp.
De acordo com a Associação Mulheres Guerreiras, são 117 estabelecimentos e 1,7 mil trabalhadores do sexo em atividade atualmente no Itatinga, que “funciona” 24 horas por dia.
Quem circula pelo bairro, às margens da Rodovia Santos Dumont (SP-075), logo entende a fama e os números expressivos: em meio a bares movimentados, música alta e mulheres seminuas, há um fluxo intenso de veículos, com placas de diversas cidades da região.
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Esse cenário até foi impactado durante a pandemia, mas não “derrubou o bairro”. Doutoranda do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Carolina Bonomi passou um ano no local para acompanhar a rotina das trabalhadoras e os desafios enfrentados justamente nesse período da emergência sanitária.
“Impactou muito para as pessoas que consomem esse tipo de serviço. Depois que passou o Auxílio Emergencial, foi decaindo o movimento nas zonas de prostituição. E além da Covid-19, também foi se consolidando o mercado sexual online. Mas nesse caso, muitas foram integrando os trabalhos. Se a renda do presencial não estava dando conta, começaram a vender conteúdo na internet”, explica a pesquisadora.
Ruas movimentas e trabalhadoras do sexo seminuas: Jardim Itatinga, em Campinas (SP), é considerado uma das maiores áreas de prostituição da América Latina
Fernando Evans/g1
A maranhense Betania Santos, trabalhadora do sexo há 32 anos no Itatinga, conta que algumas companheiras até migraram para a internet, mas essa é uma atividade que ela não considera segura.
“Eu nunca aderi a outro tipo de relacionamento com o trabalho sexual. Para mim é no portão ou na boate, não gosto dessa coisa oculta. A internet expõe e esconde muito ao mesmo tempo”, defende.
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Aos 50 anos, a ativista dos direitos da categoria, que chegou em Campinas no início dos anos 1990 e criou os três filhos com o trabalho sexual, explica que nos últimos anos algumas trabalhadoras até deixaram o Itatinga, mas o bairro jamais parou e, ano após ano, reforça a sua existência.
“A gente vai sofrendo as mudanças como todo terrirório brasileiro, mas no Jardim Itatinga até hoje, as mudanças foram para melhor. Hoje temos muito mais possibilidades, espaço para nossas crianças, temos outros estabelecimentos, nossa expansão é sempre para melhorar”, destaca.
Carolina Bonomi vê que os períodos recentes de provação do bairro, desde os percalços da economia até o impacto da venda de sexo pela internet, como mais uma transformação dentro de um ciclo que existe no itatinga desde sua criação.
“As pessoas perguntam se eu acho que o Itatinga vai acabar. Não, não vai acabar. É um bairro que inclusive se consolidou na época da ditadura militar, que a gente tinha regras e leis muito rígidas. Várias prostitutas sumiram, foram torturadas, e isso não impediu o crescimento do bairro, que já passou por conflitos e tensões”.
Betania Santos, trabalhadora do sexo há 32 anos no Jardim Itatinga, em Campinas (SP)
Fernando Evans/g1
A pesquisadora defende que a própria dinâmica do bairro cria formas para ele se regular, se manter. Isso tanto de quem trabalha para quem frequenta.
“São muitas casas e a gente tem que pensar que, por exemplo, o público que consome esse tipo de serviço é o mais diversificado possível. Tem gente que não se adaptou aos sites, inclusive acham inseguros não saber quem é que está contratando, mas tem quem goste, inclusive, desse convívio com a zona, que gosta do cabaré, de ir ao bar e fletar com a profissional”, pontua Carolina.
Regulamentação do trabalho
Diante de uma atividade com tanto interesse, que movimenta a economia local, a questão que Carolina e Betania levantam é a importância de discutir a normatização do trabalho sexual, que permita segurança tanto para quem atua como para quem consome esse serviço.
Em 2023, uma operação conjunta de órgãos públicos em Itapira (SP) resultou, pela primeira vez no Brasil, em um acordo de reconhecimento do vínculo empregatício para três profissionais do sexo – foi celebrado um acordo para que o empregador realizasse o registro em carteira de trabalho.
Vale destacar que em 2015 o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) incluiu na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) o verbete “profissional do sexo”.
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“A prostituição é um fenômeno social, ela também tem suas transformações e ela vai se adaptando a cada momento histórico. Mas a gente tem que pensar: vamos deixar essas pessoas em condições ainda mais precárias?”, indaga a pesquisadora.
“Trabalho sexual não é crime, mas apesar de exister um reconhecimento, não existe uma formalização, que impacta não só nós, mas todo uma cadeia. No Itatinga, você tem quem venda bebidas, roupas, procedimentos estéticos. É um bairro que economicamente depende do trabalho sexual”, enfatiza Betania.
Trabalhadoras do sexo à espera de clientes em um dos estabelecimentos em funcionamento no Jardim Itatinga, em Campinas (SP)
Fernando Evans/g1
Apesar das barreiras de uma sociedade que em sua visão ainda é muito conservadora, a ativista lembra que ao passar dos anos mais pessoas conseguem se declarar como trabalhadoras do sexo, mas que alguns rótulos precisam ser desfeitos.
“Não tem glamour, romantismo. Trabalho sexual é trabalho. Não é fácil coisa nenhuma, e não ganha muito como se imagina. O que se pede é um direito mínimo. A possibilidade de pagar uma Previdência e, num dia que estiver doente, poder ter um auxílio. Pensar em aposentadoria”, defende Betania.
Trabalho na pandemia
Ao longo de três décadas de atuação no Itatinga, Betania acumula histórias e clientes. Diz não ficar fixa em nenhuma das casas, mas pelo conhecimento, avisa que pode atender em qualquer uma delas – a relação entre os estabelecimentos e profissionais, conta, está na locação de quartos para o trabalho.
Ela também atende no imóvel onde funciona a Associação Mulheres Guerreiras, entidade que batalha pelos direitos e visibilidade das trabalhadoras do sexo. A casa simples reúne tudo o que ela precisa para sua profissão. “Nada mais que um quarto e uma cama”, afirma.
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Das situações vividas nas últimas décadas, a pandemia foi uma que deixou muitas histórias. Por conta das relações estabelecidas, disse que não parou de atendê-los, vetando apenas um, já octagenário, por receio de que ele pudesse ser afetado pela Covid-19.
“Eu não estava atendendo, e um dia a filha dele me ligou. Ao atender, pensei: ‘o que será que ela quer comigo?’. Mas ela me ligou para pedir que eu atendesse o pai, que estava entrando em paranoia. A família sabia que eu o atendia, disse que ele precisava do meu atendimento. Meu medo era grande. Mas acabei aceitando o convite, e acabei almoçando com toda a família, mulher, filhos, para depois atendê-lo”, recorda.
Betania Santos, trabalhadora sexual e ativista, no imóvel onde funciona a Associação Mulheres Guerreiras no Jardim itatinga, em Campinas (SP)
Fernando Evans/g1
E o futuro?
Se por um lado o Jardim Itatinga mostra-se consolidado, uma preocupação é com a ampliação do debate sobre o trabalho sexual, e como isso é visto na sociedade.
“Eu vejo agora um cenário muito crítico, uma nova geração conservadora, e em discussões assim a gente vê a criação de vários pânicos morais. Sexo como algo negativo. Sou de uma geração que se falava muito sobre Aids, gravidez, prazer. Mas da mesma forma que estamos em um ciclo ruim, já tivemos percalços em outras fases e depois mudou”, destaca Carolina.
A pesquisadora da Unicamp defende que educação sexual deve ser tratado como política pública.
“É preciso discutir a relaçao das pessoas com o sexo como um todo. Entendimento do corpo, de prazeres, de que o sexo também pode ser pago. A gente conseguiu, ao longo dos anos, com o movimento feminista, falar que o sexo não é só reprodutivo”.
De acordo com a Associação Mulheres Guerreiras, Jd. Itatinga, em Campinas (SP), concentra 1,7 mil trabalhadores do sexo
Fernando Evans/g1
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