Museu das cadeias expõe micro-ondas de maço de cigarro e “maria louca”

São Paulo — Em 8 de dezembro de 2002, a Casa de Detenção do Carandiru, na zona norte paulistana, foi implodida. Em menos de dez segundos, foram ao chão estruturas que mantiveram presidiários, atrás das grades, por pouco mais de 82 anos.

Palco em 1992 de um dos maiores massacres do sistema carcerário de São Paulo — quando 111 presos foram executados por policiais militares —, o local foi transformado em um parque, onde parte da memória das prisões e de seus encarcerados segue preservada no Museu Penitenciário Paulista, cuja entrada é gratuita.

O espaço exibe resultados concretos de produções artísticas, profissionalizantes, além das “gambiarras” feitas pelos detentos. Entre elas, estão três micro-ondas com os quais os presos conseguiam assar até pão, com a vantagem de fazer isso sem radiação. Esse tipo de utensílio improvisado não é mais encontrado nas cadeias paulistas, por conta de alguns itens atualmente indisponíveis.

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Micro-ondas feito com caixa de papelão e revestido com pregadores de roupa

Presos conseguiam até assar pão com micro-ondas improvisados
Museu abre das 9h às 16h, de segunda a sexta
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Interior de micro-ondas artesanais era revestido com alumínio de maços de cigarro

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Micro-ondas feito com caixa de papelão e revestido com pregadores de roupa

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Presos conseguiam até assar pão com micro-ondas improvisados

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Museu abre das 9h às 16h, de segunda a sexta

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“A estrutura de um desses fornos improvisados é uma caixa de papelão, por fora coberto com pregadores de madeira. A parte de dentro é forrada com alumínio de maços de cigarro. Antigamente, os maços de cigarro eram inteiros revestidos de alumínio, hoje não são mais. O calor era gerado por lâmpadas incandescentes [indisponíveis hoje nas cadeias]. O tamanho da caixa determinava o número de lâmpadas usadas”, conta a historiadora Josinete Barros de Lima, de 72 anos, mais conhecida como Josi.

Trabalhando no museu desde quando ele foi aberto ao público, há dez anos, ela acrescenta que o acervo, no entanto, existe desde a fundação da Penitenciária do Estado, em abril de 1920. O prédio é gerido pela Secretaria da Administração Penitenciária (SAP).

Cadeia modelo

A ideia do museu até 2014, explica Josi, era apresentar às autoridades os resultados das oficinas artísticas e profissionalizantes oferecidas aos presos, com o intuito de ressocializá-los. Os detentos recebiam certificados dos cursos, saindo da cadeia com uma profissão.

“Todo preso quando entrava no sistema estudava, aprendia um ofício. Alguns faziam pintura, outros móveis artísticos. Nosso acervo apresenta isso ao público. Como estamos no Carandiru, ela é composto basicamente de obras dos presos das instituições do entorno”.

Diferentemente da superlotação atual, em meio à qual o Primeiro Comando da Capital (PCC) dita as regras para grande parte da massa carcerária, a Penitenciária do Estado era um modelo de modernidade arquitetônica e disciplinar.

Conhecida na ocasião como Casa de Regeneração, o espaço garantia que cada preso ficasse confinado em uma cela individual. O projeto de ressocialização ali desenvolvido chegou a ser reconhecido internacionalmente. Desse período, o museu preserva obras de arte e móveis, resultantes de um período no qual os presidiários tinham garantidas condições dignas durante o encarceramento.

Deterioração, maricas e tatuagens

Com o passar das décadas, a penitenciária ganhou vizinhos — o Presídio de Mulheres, a Casa de Detenção, o Presídio da Polícia Civil — que compunham um complexo penitenciário.

Nesse andar do tempo, as instalações também foram se deteriorando e, paulatinamente, criando as condições para a atual realidade vivenciada no cárcere.

O acervo do museu também preserva alguns objetos e a memória de “produtos” daquela época — alguns existem até hoje no sistema prisional. Um deles são as maricas, como são chamados os cachimbos na cadeia.

“Ocorreu uma progressão [na feitura dos cachimbos], inclusive por causa da comida que entra. Tem com osso de frango, por exemplo, com osso de rabada, caroço de azeitona temos aqui também. Alguns usavam imagem sacra e até lâmpadas para fazer os cachimbos”, conta Josi.

As tatuagens, usadas como código de comunicação entre os presidiários, como já mostrado pelo Metrópoles (clique aqui para ler), não poderiam ficar de fora.

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Acervo é composto também por obras de arte, feitas por presos

Museu preserva memória dos presídios na zona norte de SP
Museu foi aberto ao público há 10 anos
Acervo conta com peças desde a década de 1920
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Acervo é composto também por obras de arte, feitas por presos

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Museu preserva memória dos presídios na zona norte de SP

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Museu foi aberto ao público há 10 anos

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Acervo conta com peças desde a década de 1920

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O museu preserva algumas máquinas com as quais os presos marcavam a pela uns dos outros. Uma destacada por Josi, por conta da criatividade, é uma peça feita com o motor de um carrinho de controle remoto.

Pelo fato de esse tipo de motor queimar, caso ligado diretamente à rede elétrica da cela, os presos criaram um redutor de voltagem usando água e sabão. “Eles faziam uma solução de água e sabão, pastosa, colocavam parte da fiação em um potinho e a outra na tomada. Aí o motor era acionado com um isqueiro”, explica Josi.

“Maria louca”

Frequentado por estudantes, curiosos e egressos do sistema prisional, o museu ainda apresenta uma prática, proibida, mas que ainda hoje é feita pelos presidiários para se embriagar: a produção de “maria louca”. A bebida é feita com frutas e açúcar, o princípio básico para se produzir licores. Após a fermentação, que no linguajar da cadeira é “chocar”, os detentos coam e a mistura e o líquido resultante já pode ser consumido.

“Mas a partir desse tipo de licor, alguns presos, tendo condições, conseguem fazer a destilação, com teor alcoólico igual a do absinto [bebida de origem francesa cuja graduação alcoólica pode chegar a 90%]. O teste de qualidade é jogar o líquido no chão e atear fogo. Se sair uma chama azulada, quer dizer que deu certo”, explica a historiadora.

Apesar de o museu apresentar aos visitantes essas práticas ilegais, Josi destaca não haver nenhum tipo de menção ao PCC, ou qualquer facção criminosa.

“Nossa intenção é mostrar o trabalho feito [no sistema carcerário]. A gente não toca nisso [facções]. Como falei, nossa diretriz é a reeducação. Por isso, ainda existem oficinas para quando o preso sair montar uma MEI [Micro Empreendedor Individual] e se manter de forma lícita”.

Serviço

O Museu Penitenciário Paulista funciona de segunda a sexta-feira (em dias úteis), das 9h até 16h.

Ele fica na Avenida Zaki Narchi, 1207, Carandiru.

Contato: (11) 2221-0275

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